Política e Resenha

84 Anos de Utopia: O Cancioneiro Imortal de um Poeta Baiano”

 

 

A Voz Guerrilheira de José Carlos Capinan: Poesia como Arma na América Latina

Em um continente marcado por ditaduras, desigualdades e a incessante busca por identidade, a obra de José Carlos Capinan emerge não apenas como arte, mas como um manifesto pulsante de resistência. Nascido na Bahia em 1941, Capinan transcende a figura do poeta para se tornar um arquiteto de versos que desenham mapas de luta e esperança. Sua canção “Soy Loco por ti, América”, composta em 1967 com Gilberto Gil, é mais que uma melodia: é um grito cifrado de dor e rebeldia, um epitáfio para Che Guevara e um hino à unidade latino-americana.

Choro e Revolução: A Gênese de um Hino Clandestino
Escrita sob o impacto da execução de Che Guevara na Bolívia, a música nasceu de lágrimas. Capinan confessou ter composto os versos “chorando”, enquanto o Brasil mergulhava na escuridão da ditadura militar. A letra, em “portunhol”, mescla português e espanhol numa fusão linguística que é também política. Essa escolha não foi acidental: ao diluir fronteiras idiomáticas, Capinan e Gil burlavam a censura e celebravam a insurgência continental. Os versos “Antes que o dia arrebente / O nome do homem morto / Ya no se puede decirlo” encapsulam a ambiguidade necessária para escapar aos ouvidos da repressão, transformando a canção em um código de resistência. Gravada por Caetano Veloso em plena efervescência tropicalista, a música tornou-se um símbolo da contracultura que desafiava autoritarismos com metáforas e ousos estéticos.

Tropicalismo e a Cartografia da Resistência
O tropicalismo, movimento do qual Capinan foi um dos pilares invisíveis, abraçou a contradição como estética: o arcaico e o moderno, o regional e o universal. Em “Soy Loco por ti, América”, a referência ao sertão e às cidades, às raízes indígenas e à herança africana, desenha uma geografia humana que unia o Brasil profundo às lutas continentais. Não por acaso, a canção ecoa a utopia de uma América Latina unida, sonho que Guevara carregava e que a ditadura tentava calar. Capinan, com sua poesia, tecia uma rede de solidariedade invisível aos olhos dos censores, mas visível aos ouvidos dos que resistiam.

Do Sertão ao Mundo: A Brasilidade como Ato Político
A obra de Capinan é um inventário da brasilidade em suas múltiplas camadas. Em canções como “Qualquer Coisa” (com Caetano Veloso) ou “Canto do Povo de um Lugar”, ele mistura a cadência dos repentes nordestinos com a urgência das metrópoles, criando uma síntese que é tanto denúncia quanto celebração. Seus versos mapeiam secas, festas populares, desigualdades e sonhos, revelando um Brasil que resiste à homogenização cultural. Essa geografia poética não é nostalgia: é um projeto de nação, onde o sertão e o asfalto dialogam, e onde a cultura popular se ergue como trincheira.

Legado: A Voz que Nunca Silencia
Mais de cinco décadas depois, a voz guerrilheira de Capinan permanece viva. Em um momento em que a América Latina enfrenta novos autoritarismos e a crise ecológica e social se aprofunda, sua obra ressoa. “Soy Loco por ti, América” não fala apenas de 1967; fala de hoje. Lembra-nos que a arte é território de luta, onde metáforas viram armas e versos criam pontes entre os oprimidos. Capinan, o poeta-arquiteto, nos deixa um legado claro: resistir é, antes de tudo, um ato de imaginação. E na América Latina, a imaginação nunca foi crime.