Lygia Fagundes Telles, com sua habitual clareza e sensibilidade, já identificava em 1996 uma enfermidade crônica da cultura brasileira: a necrofilia literária. “O escritor no Brasil fica bom, fica maravilhoso, depois da morte”, afirmou. Suas palavras, corroboradas por outros nomes de peso como Ignácio de Loyola Brandão e José Castello, permanecem ecoando, mais pertinentes do que nunca. Mas o que nos leva a essa inquietante necessidade de glorificar o escritor apenas após o último suspiro, de reconhecer o talento somente quando este já não pode mais desfrutar do reconhecimento?
Parece haver uma certa conveniência na celebração póstuma. O artista morto não questiona, não desafia, não gera desconforto. Ele deixa de ser uma figura ativa, imprevisível e contestadora para se tornar uma memória fixa, uma estátua imutável. É mais fácil enaltecê-lo em sua ausência definitiva do que lidar com a complexidade de sua presença criativa. Enquanto vivos, artistas confrontam o status quo, expõem feridas sociais, desafiam a mediocridade e provocam reflexões que muitas vezes preferimos evitar. Mortos, eles são silenciosos, seguros e fáceis de colocar em pedestais convenientes.
Clarice Lispector, em suas correspondências, expressava o peso do descaso que enfrentava. Hoje, sua genialidade é um consenso; mas, em sua época, foi muitas vezes ignorada e mal compreendida. Quantos Clarices ainda estão à margem, lutando para existir em um ambiente que insiste em relegá-los ao esquecimento, até que a morte lhes conceda a validação que a vida lhes negou?
Esse fenômeno não se restringe à literatura; ele permeia toda a nossa cultura. Vivemos em um país que prefere a segurança do passado à inquietude do presente. Celebramos o que já foi, muitas vezes de forma idealizada, enquanto desvalorizamos a ousadia do novo e o potencial transformador do que está sendo criado agora. É uma postura que sufoca a inovação e mina o desenvolvimento cultural.
Romper esse ciclo exige coragem e compromisso. É fundamental valorizar os artistas em vida, criar um ambiente em que o contemporâneo seja apreciado, em que a criatividade e o pensamento crítico tenham espaço para florescer. Precisamos reconhecer os talentos que nos cercam hoje, enquanto estão entre nós, para que não continuemos a glorificar em estátuas e epitáfios aqueles que poderíamos ter celebrado em vida.
O futuro da cultura brasileira depende disso: de nos libertarmos do apego à necrofilia literária e darmos espaço ao gênio vivo, ainda pulsante e cheio de vigor. Afinal, como podemos construir um legado cultural verdadeiramente rico se insistimos em só admirar aquilo que já se calou?