Política e Resenha

Progresso ou Esquecimento? O Dilema do Patrimônio em Vitória da Conquista

 

Como a cidade navega entre o desenvolvimento e a preservação de sua memória

Um Núcleo Histórico Sob Ameaça

Vitória da Conquista, encravada no sertão baiano, carrega em suas ruas séculos de história que vão desde os embates coloniais até o pulsar do café no século XX. No entanto, esse legado está sob risco. A dissertação de conclusão de curso de Mestrado em Museologia da Universidade Federal da Bahia Demolições, Discursos e Silêncios, de Fábio Sena Santos, revela um cenário alarmante: o patrimônio edificado da cidade está sendo soterrado por um “progresso” que prioriza o concreto sobre a cultura. O núcleo histórico, berço da identidade conquistense, transforma-se em palco de uma disputa silenciosa entre a memória coletiva e a ganância imobiliária.

Demolições: Quando o Novo Apaga o Antigo

A antiga Igreja Matriz, erguida em 1807 com técnicas de adobe e taipa, foi demolida em 1932 sob o pretexto de risco estrutural. Seus escombros levaram consigo não apenas tijolos, mas símbolos da resistência indígena, da formação social do sertão e da fé de gerações. No lugar, surgiu um templo imponente, mas vazio de significado histórico. Outro marco perdido foi o Hotel Conquista, demolido em 1973 para abrigar uma agência bancária. Suas paredes de adobão, testemunhas de conflitos políticos como a guerra entre Meletes e Peduros (1919), viraram pó em nome da modernidade.

Santos expõe como a imprensa local, entre as décadas de 1920 e 1970, alimentou narrativas que glorificavam a “renovação urbana”, associando-a a ideais de civilização. Jornais como A Semana e O Combate defendiam a substituição de casarões coloniais por prédios “dignos de uma cidade moderna”, ignorando que a arquitetura eclética do século XIX era, ela própria, um diálogo entre tradição e inovação.

Leis no Papel, Esquecimento na Prática

Vitória da Conquista não é desprovida de instrumentos legais para proteger seu patrimônio. A Lei Municipal nº 707/1993, por exemplo, estabelece diretrizes para tombamento e conservação. Além disso, o Plano Diretor Urbano (Lei nº 1.385/2006) prevê a proteção de paisagens culturais. No entanto, como demonstra a pesquisa de Santos, há um abismo entre a teoria e a prática. O caso da casa natal de Glauber Rocha, ladeada por um prédio de nove andares que a soterra visualmente, ilustra a fragilidade das normas. Mesmo com o imóvel em processo de tombamento, a falta de fiscalização permitiu que a especulação prevalecesse.

A dissertação também revela contradições: enquanto a Lagoa de Maria Clemência foi protegida por lei em 1948 por seu valor histórico e ambiental, dezenas de casarões no centro foram demolidos sem qualquer resistência institucional. O poder público, muitas vezes, age de forma reativa, como na desapropriação do Solar dos Fonsecas em 1985, já em estado avançado de degradação.

Patrimônio como Arquivo Vivo

Os casarões remanescentes não são meras relíquias estéticas. O Sobrado de Maneca Santos, hoje sede da Câmara Municipal, foi cenário de embates armados no início do século XX. A Casa de Dona Henriqueta Prates, atual Museu Regional, preserva em suas paredes a história de mulheres que desafiaram convenções sociais. Até mesmo a Praça Tancredo Neves, com seus sobrados ecléticos, funciona como um livro aberto da evolução urbana da cidade, do colonial tardio ao art déco.

Demolições não apagam apenas paredes, mas narrativas. Como lembra o geógrafo Milton Santos, citado na pesquisa, “o espaço é uma realidade que dura”: cada edificação carrega camadas de tempo, conflitos e conquistas. Ignorar isso é condenar a cidade a uma amnésia coletiva, onde o passado vira entulho e o futuro, um projeto sem raízes.

Progresso Para Quem?

A pergunta central, segundo Santos, é: quem se beneficia com esse “progresso”? A substituição de casarões por estacionamentos e lojas de franchising gera empregos temporários, mas esvazia o centro histórico de sua função social e simbólica. Enquanto shoppings e bancos prosperam, a população perde espaços de convivência e referências identitárias.

Cidades como Salvador e Ouro Preto mostram que é possível harmonizar preservação e desenvolvimento. Nelas, o patrimônio histórico virou motor econômico através do turismo cultural e da revitalização de imóveis para usos contemporâneos (hotéis boutique, centros culturais). Em Vitória da Conquista, falta vontade política para replicar esses modelos. Projetos de restauro, como o do Solar dos Fonsecas, ficaram engavetados por décadas, enquanto o poder público prioriza obras viárias e expansionismo urbano.

Caminhos Possíveis: Como Resgatar a Memória

A solução não está em congelar a cidade no tempo, mas em reinventar seu patrimônio. Algumas propostas emergem da pesquisa:

  1. Inventário Participativo: Envolver a comunidade no mapeamento de imóveis históricos, valorizando memórias afetivas e usos sociais.
  2. Incentivos Fiscais: Reduzir impostos para proprietários que restauraram casarões, como feito no Programa Monumenta em cidades históricas.
  3. Turismo Cultural: Criar roteiros temáticos que liguem arquitetura, história indígena e personalidades locais, como Glauber Rocha.
  4. Educação Patrimonial: Incluir a história da cidade no currículo escolar, promovendo visitas guiadas e oficinas de restauro simbólico.

Conclusão: Um Futuro que Dialogue com o Passado

Vitória da Conquista está num cruzamento: pode seguir o caminho de tantas cidades brasileiras que viraram caricaturas de si mesmas, ou pode escolher ser exemplo de progresso com identidade. Como afirma Santos, “preservar não é nostalgia, é garantir que as futuras gerações reconheçam, nas pedras e nas paredes, a própria história”. O desafio é transformar o patrimônio em ponte, não em obstáculo. Afinal, uma cidade que apaga seu passado perde não apenas beleza, mas a capacidade de entender quem é — e para onde quer ir.