Mergulho nas Entranhas da Delação
Desde ontem, debrucei-me sobre as mais de 800 páginas do depoimento de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro. O documento, repleto de detalhes e nomes, não é apenas uma denúncia: é um mapa que aponta para um possível esquema de poder, fraude e tentativa de subversão da democracia. Como pesquisador, destaco aqui os pontos que, se comprovados, podem comprometer definitivamente o ex-presidente. Não se trata de síntese, mas de uma análise crua das alegações — todas extraídas diretamente do testemunho.
1. Supostas Tentativas de Anular as Eleições de 2022: O Plano nas Sombras
O núcleo da delação de Cid gira em torno de dois eixos: a articulação para invalidar as eleições e a busca por apoio militar para um golpe. Segundo o depoimento, Bolsonaro recebeu um documento que propunha a prisão de ministros do STF (Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes), do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e a anulação das eleições de 2022. O ex-presidente, porém, teria editado a proposta, mantendo apenas a prisão de Moraes e a convocação de novas eleições.
A estratégia, conforme Cid, dependia da reação dos comandantes das Forças Armadas. Bolsonaro teria pressionado os generais Almirante Garnier, Paulo Sérgio Freire Gomes e Brigadeiro Batista Junior a apoiarem a medida. O depoimento revela ainda que o ex-presidente trabalhava com duas hipóteses paralelas:
- Primeira: encontrar “evidências” de fraude nas urnas, mesmo que inexistentes, para justificar a intervenção.
- Segunda: mobilizar um grupo “radical” (termo usado no documento) para instigar um golpe, aproveitando-se de setores extremistas.
Em uma reunião no Palácio da Alvorada, descrita por Cid, Filipe Martins (assessor de Bolsonaro), um jurista não identificado e um padre apresentaram ao ex-presidente um “manual do golpe”. O texto detalhava supostas interferências do Judiciário no Executivo e culminava em ordens para prisões políticas e convocação de novas eleições. Para consolidar o plano, Bolsonaro teria exigido do General Paulo Sérgio um relatório “mais contundente” da Comissão de Transparência do Ministério da Defesa — que, na prática, serviria como justificativa técnica para questionar as urnas.
2. Ações Após as Eleições: O Combustível da Inflamação
Após a derrota eleitoral, Bolsonaro não teria aceitado a realidade. Segundo Cid, o ex-presidente “não queria que as pessoas saíssem das ruas”, alimentando protestos para criar um “clamor público” que invertesse a narrativa. A ideia era manter a pressão popular até que as instituições cedessem à tese de fraude.
O testemunho também menciona que Bolsonaro “romantizou” o Artigo 142 da Constituição, interpretado por aliados como uma brecha para intervenção militar. Um grupo específico, composto por militares e civis, pressionava o ex-presidente a assinar um decreto de intervenção, confiando no apoio dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) e de parte da população.
3. Uso da Estrutura Estatal: O Gabinete do Ódio e a Espionagem
Mauro Cid descreve um esquema organizado dentro do governo para minar instituições e manipular a opinião pública. O chamado “Gabinete do Ódio” teria operado sob ordens diretas de Bolsonaro, produzindo e disseminando notícias falsas contra o TSE, o STF e adversários políticos.
Um dos pontos mais graves é a alegação de que Bolsonaro ordenou ao Coronel Marcelo Câmara o monitoramento ilegal do Ministro Alexandre de Moraes. A operação incluía a coleta de dados sigilosos e a produção de relatórios para embasar ações políticas contra o magistrado. Além disso, Cid menciona a existência de “certificados” (documentos não especificados) que teriam sido impressos e entregues ao ex-presidente — possivelmente ligados a esquemas de desinformação.
4. Outros Crimes Potenciais: Das Joias ao Lixo Ético
A delação escancara práticas que vão além do ataque à democracia. Cid relata:
- Uso indevido de cartões corporativos para pagar despesas pessoais da família Bolsonaro.
- Falsificação de cartões de vacina contra a COVID-19, com envolvimento direto do ex-presidente.
- Desvio de presentes presidenciais, incluindo joias recebidas de autoridades estrangeiras.
Sobre as joias, o depoimento detalha uma operação complexa: peças do acervo público teriam sido vendidas no exterior e recompradas por laranjas, com parte do dinheiro revertido para Bolsonaro. O esquema envolvia intermediários e contas fantasmas, segundo Cid.
A Delação e a Justiça: O Que Resta?
As acusações são graves, mas é preciso cautela. O testemunho de Cid — ainda que detalhado — é unilateral. Ele próprio é réu em múltiplos processos e negociou sua colaboração em troca de benefícios. A validade jurídica das alegações dependerá de corroborar provas: mensagens, documentos e testemunhos de terceiros.
Se confirmadas, porém, as informações pintam um retrato devastador: um presidente que, ao perder as eleições, tentou transformar o Estado em ferramenta de um projeto autoritário. O caso vai além de Bolsonaro: expõe como redes de poder, dentro e fora do governo, podem se articular para romper o pacto democrático.
A história julgará não apenas o ex-presidente, mas a capacidade das instituições brasileiras de frear aqueles que confundem o Palácio do Planalto com um trono. Enquanto isso, as 800 páginas de Mauro Cid seguem como um lembrete: a democracia é frágil, e vigiá-la é tarefa de todos.