No Brasil, a justiça é frequentemente idealizada como o último refúgio para quem sofre, um espaço onde o cidadão comum, esmagado por desigualdades e necessidades, pode buscar reparação. Mas o que acontece quando até esse pilar da democracia parece estar mais alinhado com os privilégios de uma elite do que com as agruras do povo? O desembargador Orlando Perri, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, oferece um exemplo gritante dessa desconexão. Em entrevista ao Estadão, ele reclamou que a vida de um magistrado é “quase como a vida de um monge”, marcada por dificuldades financeiras. A declaração seria risível, não fosse trágica: em 2024, Perri recebeu uma remuneração total de R$ 1,4 milhão, incluindo, em média, R$ 78 mil por mês em indenizações, os chamados “penduricalhos”. Enquanto o povo passa fome, a justiça, que deveria protegê-lo, parece estar mais ocupada lamentando os “sacrifícios” de seus milionários.
A ironia da situação é inescapável. De um lado, temos um desembargador que, mesmo com uma renda anual que ultrapassa a marca de um milhão, sente-se à vontade para comparar sua vida à de um monge – uma figura associada à renúncia material e à simplicidade. De outro, milhões de brasileiros enfrentam a inflação, o desemprego e a precariedade de serviços básicos, sem acesso a uma fração sequer do que Perri considera insuficiente. Esses “penduricalhos”, benefícios que engordam os salários dos magistrados além do teto constitucional, são um símbolo de privilégio em um país onde a desigualdade é uma ferida aberta. Para o povo, que mal consegue pagar as contas, a ideia de que R$ 1,4 milhão por ano represente “agruras” soa como um insulto.
Os “Penduricalhos” e a Bolha do Judiciário
Não é segredo que os magistrados brasileiros estão entre os mais bem remunerados do mundo. O salário base já é elevado, mas os “penduricalhos” – auxílios, gratificações e indenizações – frequentemente elevam os ganhos a patamares exorbitantes. No caso de Perri, os R$ 78 mil mensais em indenizações são um exemplo claro de como esses benefícios criam uma realidade paralela para a elite judiciária. A justificativa para tais valores costuma ser a necessidade de garantir a independência e a dignidade da profissão. Mas até que ponto isso é razoável? Em um contexto de crise econômica, onde o salário mínimo mal cobre o básico, esses privilégios parecem menos uma necessidade e mais um luxo injustificável.
A falta de transparência sobre como esses “penduricalhos” são calculados e distribuídos só agrava o problema. Sem clareza, o povo fica à mercê de um sistema que opera em segredo, beneficiando a si mesmo enquanto ignora as necessidades de quem deveria servir. Se a justiça é um direito de todos, por que seus representantes vivem em uma esfera tão distante da realidade social? A resposta parece clara: o judiciário, em muitos aspectos, tornou-se parte do mesmo “sistema” que oprime o povo, um clube exclusivo onde os sacrifícios do cidadão comum são invisíveis.
A Justiça Perde o Povo – e a Credibilidade
A declaração de Perri não é apenas uma gafe; é um golpe na confiança que o povo deposita no judiciário. Quando um desembargador, que deveria encarnar a imparcialidade e a sensatez, demonstra tamanha falta de empatia, ele reforça a percepção de que a justiça não é para todos. Para o trabalhador que ganha menos em um ano do que Perri recebe em um mês, a ideia de recorrer ao judiciário torna-se quase uma ilusão. Se os magistrados estão tão alheios às dificuldades da população, como podem julgá-las com equidade? A justiça, que deveria ser um espelho da sociedade, reflete cada vez mais os interesses de uma elite desconectada.
Essa percepção tem consequências graves. Um judiciário visto como privilegiado e insensível perde sua legitimidade. O povo, já cansado de um sistema que parece favorecer os poderosos, começa a desistir da justiça como solução. E quem pode culpá-lo? Quando a própria instituição que deveria garantir direitos se queixa de “agruras” enquanto ostenta milhões, ela se torna cúmplice da exclusão que marca o Brasil. A confiança no sistema judiciário, essencial para a democracia, erode-se a cada declaração como essa.
Um Chamado por Transparência e Humanidade
Se o judiciário quer recuperar o povo – e sua própria credibilidade –, precisa mudar. O primeiro passo é a transparência. Os salários, os “penduricalhos” e suas justificativas devem ser públicos, acessíveis e compreensíveis. Não basta dizer que esses valores são legais; é preciso provar que são justos, especialmente em um país onde a miséria é uma realidade para tantos. Além disso, os magistrados precisam demonstrar sensibilidade. Declarações como a de Perri não são apenas impensadas; são um sinal de quão distante o judiciário está de quem mais precisa dele.
A justiça não pode ser um privilégio dos privilegiados. Ela deve ser um direito universal, exercido por pessoas que entendam as dores do povo, não que as ignorem em nome de um suposto “martírio” financeiro. Enquanto desembargadores como Orlando Perri lamentam sua “vida de monge” com milhões no bolso, o povo que sofre não tem nem a quem recorrer. A justiça, que deveria ser sua aliada, virou mais um braço do sistema que os exclui. Para mudar isso, é preciso mais do que palavras bonitas: é preciso accountability, empatia e uma conexão real com a sociedade. Só assim o judiciário deixará de ser parte do problema e voltará a ser parte da solução.