Política e Resenha

O Luto que Respira ao Meu Lado (Padre Carlos)

 

A velha fotografia amarelada descansa na minha mão. Nela, sorrimos. Um sorriso tão largo e espontâneo que parece impossível que tenha existido fora daquele instante congelado. E é aí que a dor começa, sutil e traiçoeira. Porque você, na foto, está vivo. Você está vivo agora, em algum lugar desta mesma cidade, respirando o mesmo ar poluído, talvez até sorrindo de novo, mas não para mim. E eu seguro este papel como quem segura a certidão de óbito de uma parte de mim que se foi com você, mesmo você estando aqui.

Eu já chorei em velórios, senti o peso definitivo do adeus, a clareza brutal de um fim. Mas esse luto de agora… ah, esse é diferente. É um luto sem caixão, sem flores murchas, sem ponto final. É a agonia da ambiguidade. Porque você existe, a possibilidade, por mais remota que seja, de um esbarrão na rua, de uma mensagem inesperada, paira no ar como uma névoa densa. E essa névoa não conforta, ela confunde. Ela alimenta uma esperança teimosa que se recusa a morrer, mesmo quando a razão grita que acabou. É como viver em um cômodo com uma porta entreaberta para um passado que insiste em vazar para o presente, impedindo que qualquer outra porta realmente se abra.

As memórias são facas de dois gumes. Lembro daquela tarde chuvosa, do cheiro de terra molhada entrando pela janela enquanto ouvíamos Caetano e planejávamos viagens que nunca aconteceram. O calor da sua mão na minha, o som exato da sua risada quando eu disse uma bobagem qualquer. Essas lembranças aquecem, são meu tesouro secreto, meu refúgio. Mas, no instante seguinte, elas cortam. Cortam fundo porque me lembram do abismo que agora nos separa. Cada detalhe sensorial – o gosto daquele café que só você sabia fazer, a melodia da “nossa” música tocando aleatoriamente no rádio – é um lembrete vívido do que foi perdido, do que não volta mais na mesma forma, com a mesma alma.

E as emoções? São um turbilhão caótico. Há dias em que a tristeza é tão pesada que mal consigo levantar da cama, uma saudade física, quase palpável, do seu cheiro, da sua voz. Em outros, a raiva me consome – raiva de você, de mim, das circunstâncias que nos afastaram, da injustiça de sentir tanto por alguém que talvez já nem se lembre de mim com a mesma intensidade. Sinto culpa, repassando conversas, gestos, procurando onde errei, o que poderia ter feito diferente. E, confesso, em momentos de exaustão, surge um alívio estranho, quase vergonhoso, por não ter mais que lidar com as complicações que nos levaram até aqui. É uma montanha-russa que me deixa exausta, sem saber em qual estação vou desembarcar.

Viver com esse vazio é aprender a tropeçar constantemente nos fantasmas do passado. É passar em frente ao nosso antigo bar favorito e sentir o estômago revirar. É ver um casal de mãos dadas e sentir uma pontada de inveja e melancolia. É saber que você continua sua vida – e talvez esteja feliz, talvez tenha encontrado novos lugares, novas músicas, novas mãos para segurar – enquanto eu ainda tento remendar os pedaços aqui. É a dificuldade de seguir em frente quando o fantasma do que fomos ainda senta à mesa comigo todos os dias, silencioso, mas imensamente presente.

Não há fórmula mágica para atravessar esse deserto. O caminho para alguma paz tem sido longo, sinuoso e, honestamente, ainda estou nele. Aprendi que não adianta “jogar a poeira para debaixo do tapete”. A dor precisa ser sentida, nomeada, chorada. Precisei encarar as memórias, não como inimigas, mas como parte da minha história, cicatrizes que contam quem eu sou. O objetivo não é esquecer, isso seria apagar uma parte vital de mim. O objetivo, talvez, seja aprender a lembrar sem que a dor me paralise. É transformar a saudade aguda em uma melancolia suave, uma aceitação resignada de que algumas conexões, por mais profundas que tenham sido, cumprem seu ciclo, mesmo que as pessoas envolvidas continuem seus caminhos separadamente.

Hoje, quando penso em você, a dor ainda está lá, uma companheira discreta. Mas ela não grita mais. Ela me lembra da beleza que foi, da lição que ficou, e da força que descobri em mim ao sobreviver a um luto por alguém que ainda vive. E, de alguma forma estranha, isso me ensinou mais sobre a vida, o amor e a impermanência do que qualquer despedida definitiva jamais poderia. É a arte delicada de carregar o passado sem ser esmagado por ele, e seguir, mesmo com a alma marcada, em direção ao que ainda há de vir.