Política e Resenha

ARTIGO – A Perigosa Fusão: Religião e Política como Ferramentas de Poder

 

 

Em uma democracia que ainda busca sua plena maturidade, assistimos hoje a um fenômeno tão previsível quanto alarmante: a instrumentalização da fé como veículo de poder político. Não se trata de uma crítica à religiosidade genuína ou à política como ciência do bem comum, mas sim do sequestro dessas dimensões fundamentais da vida social por projetos pessoais de dominação.

O cenário é desolador. Pastores transmutados em políticos profissionais, parlamentares que substituem propostas por pregações moralizantes, e todos utilizando as redes sociais não como ferramentas de diálogo democrático, mas como púlpitos digitais onde a complexidade cede lugar ao maniqueísmo.

O neopentecostalismo de mercado transformou a fé em commodity. O que assistimos não é mais a busca pelo transcendente, mas uma espetacularização onde o líder religioso-político se apresenta como CEO da salvação, vendendo não apenas promessas espirituais, mas também soluções simplistas para problemas complexos da sociedade.

Os templos virtuais das redes sociais amplificam esse fenômeno. Ali, não é mais a reflexão bíblica que importa, mas a idolatria à figura do líder. A espiritualidade se esvazia quando Deus é substituído pelo algoritmo, quando a devoção se mede em curtidas e compartilhamentos, quando o “amém” vira hashtag.

No Congresso Nacional, parlamentares da extrema direita replicam esse modelo. Em vez de projetos substantivos, oferecem “lacres”; em lugar de análises baseadas em dados, propagam um moralismo seletivo e oportunista. A construção de inimigos fictícios – os comunistas, os anticristãos, os conspiradores globalistas – serve para manter a base eleitoral em permanente estado de alerta e indignação.

As consequências dessa instrumentalização são gravíssimas. O anti-intelectualismo floresce, com opiniões desqualificando ciência e estudos aprofundados. Instituições fundamentais como a imprensa, as universidades e os próprios pilares constitucionais são sistematicamente desacreditados. A sociedade, artificialmente dividida entre “salvos” e “pecadores”, perde a capacidade de dialogar sobre suas diferenças.

Quando a política se torna espetáculo e a religião vira ferramenta de manipulação, quem perde é o cidadão. O engajamento cívico se reduz a manifestações digitais instantâneas, produzindo não uma cidadania consciente, mas um rebanho obediente. Não formamos opinião – apenas seguimos líderes carismáticos.

O episódio de 8 de janeiro demonstrou, de forma trágica, o potencial destrutivo dessa combinação. Cidadãos, muitos sinceramente movidos por convicções religiosas e patrióticas, foram transformados em massa de manobra para projetos antidemocráticos. Enquanto a sociedade se enreda em conflitos fabricados e narrativas polarizantes, o sistema continua operando silenciosamente, erodindo direitos e fragilizando instituições.

Precisamos urgentemente de uma nova alfabetização política e espiritual.

 

Padre Carlos