(Padre Carlos)
Quando a Constituição Federal de 1988 estabeleceu o regime democrático e o Estado de Direito como pilares inegociáveis da República, imaginava-se — ingenuamente, talvez — que os Poderes da União seriam guardiães desses princípios, e não seus algozes eventuais. O recente movimento da Câmara dos Deputados, tentando suspender a ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), revela um flerte perigoso com a deformação do sistema de freios e contrapesos. Trata-se, a rigor, de um casuísmo de péssimo gosto institucional, um gesto que beira o golpismo disfarçado de “prerrogativa parlamentar”.
Ramagem é acusado de instrumentalizar a Abin, agência de inteligência do Estado, para fins políticos e pessoais — uma prática típica de regimes de exceção, não de democracias constitucionais. Há indícios fortes de que informações sigilosas foram utilizadas para alimentar a máquina de intimidação do bolsonarismo, convertendo o Estado em um braço armado de projeto autoritário. Não se trata de uma divergência jurídica qualquer: estamos diante da suspeita de crime cometido contra o próprio regime democrático.
Ao tentar suspender a ação penal, a Câmara invoca uma interpretação grotesca do artigo 53 da Constituição, que assegura aos parlamentares imunidade por “opiniões, palavras e votos”. Ora, investigar crimes comuns cometidos antes do mandato — e em função de cargo distinto — não atinge qualquer imunidade. Mais que um erro de leitura constitucional, o gesto revela má-fé legislativa. A tentativa da Câmara é tão despropositada que escancara sua real intenção: proteger não só Ramagem, mas criar um precedente que possa blindar Jair Bolsonaro e seus aliados das múltiplas investigações em curso.
Trata-se de uma tentativa deliberada de subverter o sistema. Não é a primeira vez que a Câmara flerta com a impunidade autoconcedida. Em 2017, salvou Michel Temer de denúncia por corrupção. O mesmo se deu, antes, com Eduardo Cunha — até que a pressão da sociedade e a ação do Judiciário se impuseram. Mas o caso Ramagem é mais grave: porque parte de um Legislativo que passou a agir não como poder autônomo, mas como bunker jurídico do bolsonarismo em declínio.
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal não hesitou. Em decisão firme, a Corte reafirmou que não cabe ao Parlamento interferir em ações penais que não atingem diretamente o exercício do mandato. A resposta do STF foi mais do que uma reação jurídica: foi uma defesa da legalidade democrática. Em tempos de inversão de valores, quando se tenta normalizar a barbárie sob a roupagem da institucionalidade, o Judiciário reafirma seu papel de garantidor da Constituição.
A democracia brasileira vive um momento de estresse contínuo. E não é de hoje. O bolsonarismo, como fenômeno político, não se contenta em disputar o poder dentro das regras do jogo: quer redesenhá-las a seu favor, como um jogador que, ao perceber que está perdendo, tenta arrancar as peças do tabuleiro. O caso Ramagem é apenas mais um capítulo dessa investida autoritária, onde a impunidade deixa de ser um erro e se transforma em método.
Que fique registrado: a tentativa da Câmara de suspender a ação penal contra Ramagem não é apenas uma afronta ao STF. É uma declaração de guerra à lógica republicana. E, por isso mesmo, deve ser repelida com a contundência de quem sabe que a Constituição não é um ornamento retórico, mas um pacto civilizatório.