A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça atropelou o Código Penal e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e decidiu, nesta semana, que o estupro de vulnerável de uma menina de 12 anos não pode ser chamado de estupro.
Discordar dessa decisão não é questão de opinião, basta ler o que diz a lei. Está escrito no artigo 217-A: é crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Trata-se de um crime hediondo, a que chamamos de estupro de vulnerável.
Sim, vulnerável, porque uma criança menor de 14 anos não está apta a dar o seu consentimento a uma relação sexual. E hediondo, o que significa que estamos falando de um dos mais graves crimes que se podem cometer. Nesses casos, não cabem fiança, anistia, graça ou indulto.
Mas, nesta semana, uma maioria de homens ministros da Quinta Turma do STJ decidiu que, para a menina em questão, essa lei não se aplica. Por três votos a dois, mantiveram a absolvição de um homem de 20 anos acusado de violentar uma criança de 12, gerando nela uma gravidez.
Retroagindo a um tempo em que estupro era considerado crime de costumes e agressores eram absolvidos desde que se casassem com as vítimas, os ministros consideraram que valia, no caso em análise, abrir uma exceção.
Uma exceção.
Para o relator, o acusado, de origem rural, não sabia que estava cometendo um crime (!) ao se relacionar com a menina — já vimos esse filme antes. É o estupro sem intenção de estuprar. Ele não sabia. Absolvido, vai continuar sem saber.
O homem, defende o ministro da Corte, ainda teria contado com a aprovação — inicial — da mãe da menina, que mais tarde teria mudado de ideia por conta de “desentendimentos” com o rapaz.
Assim, em outras palavras, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca apelou a um conceito que em 2024 não está no nosso Código Penal: o consentimento por tabela. Se a mãe dela aprovou, e a relação ainda gerou um bebê, tudo bem violentar uma criança de 12 anos.
Como se qualquer menina ou mulher pudesse ser “dada” numa bandeja a um homem. Um precedente temerário, que coloca condições externas para a configuração do estupro de vulnerável, à revelia e em detrimento da vítima.
O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Ribeiro Dantas e Joel Ilan Paciornik. Dois ministros discordaram — Messod Azulay e Daniela Teixeira, a única mulher votante no caso.
A ministra foi contundente: “Eu apelo: não abra uma porta de horror que fará com que as nossas crianças, as nossas meninas, tenham como excludente de tipicidade de estupro de vulnerável a simples questão de o homem, maior, às vezes chefe do pai dela, no interior do Brasil, dizer: eu me apaixonei por essa criança”.Daniela Teixeira avisou: “O que vai acontecer é que os coronéis deste país vão misteriosamente se apaixonar por meninas de 12 anos”.
O relator rebateu que os dois — a menina e o adulto — chegaram a morar juntos, houve união estável e uma gravidez, e portanto a “constituição de um núcleo familiar”. O núcleo já está desfeito, ele reconheceu, “mas o pai continua dando assistência para essa criança”.
Para o ministro, é importante evitar o “esfacelamento da relação pai e filho, causando traumas muito mais danosos do que se imagina”. “A vida é maior que o direito”, ele disse. Eu pergunto: a vida de quem?
Agora temos, de um lado, um trabalhador rural que virou “pai que dá assistência”, e uma mãe que era apenas uma menina, e que teve a sua vida destruída e a sua infância roubada. O que fazer, agora, com o trauma dessa criança, que não é nem mesmo reconhecido pela Justiça?
Maria Clara, articulista do política e resenha