O feminicídio, assassinato de mulheres em razão de seu gênero, é uma chaga que persiste na sociedade brasileira, alimentada por séculos de cultura patriarcal. Contudo, ao analisarmos as raízes deste problema, é impossível ignorar o papel fundamental que o sistema jurídico, em especial o Código Civil, desempenhou na formação e perpetuação da cultura que permite e, por vezes, até justifica tais crimes.
O Código Civil brasileiro de 1916, que vigorou até 2002, foi um dos pilares legais que institucionalizou a subordinação feminina. Ao classificar a mulher casada como “relativamente incapaz”, equiparando-a a menores de idade e indígenas, o código não apenas refletiu os valores patriarcais da época, mas os cristalizou em lei, fornecendo respaldo jurídico para práticas discriminatórias.
Esta codificação da inferioridade feminina teve consequências devastadoras. Uma das mais nefastas foi a construção jurídica da categoria de “crimes em defesa da honra”. Sob este guarda-chuva legal, homens que assassinavam suas esposas, namoradas ou companheiras podiam alegar que estavam defendendo sua honra de uma suposta infidelidade ou comportamento “impróprio” da vítima. Esta aberração jurídica não apenas banalizava o assassinato de mulheres, mas também culpabilizava as vítimas por sua própria morte.
Mesmo com a reforma do Estatuto da Mulher Casada em 1962, que trouxe alguns avanços nos direitos das mulheres, a noção de “defesa da honra” permaneceu arraigada no discurso jurídico e na mentalidade social. A lentidão do sistema jurídico em se adaptar às mudanças sociais e às demandas por igualdade de gênero criou um descompasso perigoso entre a lei e a realidade das mulheres brasileiras.
Os legisladores, predominantemente homens, têm uma parcela significativa de culpa neste cenário. A composição majoritariamente masculina do Poder Legislativo ao longo da história brasileira resultou em um viés de gênero na produção das leis. Este desequilíbrio não apenas dificultou a aprovação de leis que protegessem efetivamente as mulheres, mas também perpetuou uma visão masculina do que deveria ser o papel da mulher na sociedade.
A classe jurídica, por sua vez, não está isenta de responsabilidade. Juízes, promotores e advogados, formados sob a égide de um código civil sexista, frequentemente reproduziam em suas práticas e decisões os mesmos preconceitos e estereótipos de gênero presentes na lei. A interpretação e aplicação das leis, muitas vezes, pendiam para a manutenção do status quo patriarcal, mesmo quando havia espaço para uma leitura mais progressista e igualitária.
É verdade que houve avanços significativos nas últimas décadas. A Constituição de 1988 estabeleceu a igualdade de direitos entre homens e mulheres, o novo Código Civil de 2002 eliminou dispositivos discriminatórios, e a Lei Maria da Penha (2006) e a Lei do Feminicídio (2015) representaram marcos importantes na luta contra a violência de gênero. No entanto, a herança de séculos de discriminação legal não se apaga facilmente.
O desafio que se apresenta hoje é duplo: por um lado, é necessário continuar avançando na criação de leis que protejam efetivamente as mulheres e punam adequadamente os agressores; por outro, é crucial trabalhar na mudança da cultura jurídica e social que ainda carrega os resquícios desse passado discriminatório.
A formação dos profissionais do Direito precisa incorporar uma perspectiva de gênero, que os prepare para identificar e combater as discriminações sutis que ainda permeiam o sistema jurídico. Além disso, é fundamental aumentar a representatividade feminina nos espaços de poder legislativo e judiciário, para que as leis e suas interpretações reflitam também a perspectiva e as necessidades das mulheres.
O caminho para erradicar o feminicídio é longo e complexo, mas passa necessariamente por um acerto de contas com o passado jurídico brasileiro. Reconhecer o papel que o Código Civil e a cultura jurídica tiveram na formação da mentalidade que permite e justifica a violência contra a mulher é um passo crucial para construir um futuro onde todas as vidas sejam igualmente valorizadas e protegidas pela lei.