Em uma sociedade que se diz fundada sobre os pilares da igualdade e justiça, a realidade de muitos brasileiros revela uma crua contradição: a Constituição Federal de 1988, que deveria proteger todos os cidadãos, frequentemente se mostra uma promessa vazia para as comunidades mais carentes. Hoje, gostaria de abordar uma questão central para a garantia dos direitos individuais: a inviolabilidade do lar e das correspondências, e como essa proteção, tão clara no papel, se dissolve nos bairros pobres, enquanto permanece firme e forte nos enclaves da classe média e da burguesia.
A Constituição é clara ao afirmar que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”, como cita o artigo 5º, inciso XI. Essa cláusula é projetada para garantir que o lar de cada cidadão seja um espaço de segurança e privacidade, imune a invasões injustificadas. No entanto, para muitos que vivem nas periferias do Brasil, essa garantia é constantemente violada.
Policiais entram em residências sem mandados, sob o pretexto de “flagrante delito” ou “desastre”, mas muitas vezes sem qualquer justificativa real. A violência estatal, disfarçada de cumprimento do dever, ignora as exceções previstas em lei e transforma o que deveria ser um direito fundamental em um privilégio restrito aos que moram em bairros mais abastados. Enquanto as casas de ricos e poderosos permanecem intocadas, as portas das comunidades carentes são arrombadas com facilidade alarmante, revelando uma aplicação distorcida e desigual da lei.
Não se trata apenas de invasões físicas. A inviolabilidade das correspondências e comunicações, outro direito garantido pela Constituição, também sofre de uma aplicação seletiva. Em um mundo cada vez mais digital, onde o sigilo das comunicações se torna crucial, observamos que a proteção a esse direito não é uniformemente aplicada. Investigações criminais e quebras de sigilo, que deveriam ser medidas excepcionais, frequentemente se tornam armas de opressão contra os mais pobres. E-mails, mensagens instantâneas e correspondências físicas de pessoas em comunidades vulneráveis são monitorados com uma vigilância que beira a obsessão, enquanto as elites desfrutam do luxo de uma privacidade quase impenetrável.
A Constituição permite a quebra do sigilo das comunicações por ordem judicial, em casos específicos. No entanto, na prática, essa medida, que deveria ser fundamentada e utilizada com parcimônia, muitas vezes se aplica de maneira indiscriminada e desproporcional. Mais uma vez, é nas periferias que o peso da exceção se faz sentir com mais força. O que deveria ser uma exceção pautada pelo respeito aos direitos e garantias constitucionais se torna a norma para aqueles que vivem à margem da sociedade.
O que nos falta, como nação, é a busca por um equilíbrio verdadeiro entre a proteção da privacidade e as necessidades de investigação criminal ou da segurança pública. O desequilíbrio atual revela uma sociedade que, em sua prática, subestima a dignidade humana dos pobres, ao mesmo tempo que se agarra à formalidade dos direitos para os ricos.
A inviolabilidade do lar e das comunicações não pode ser um privilégio; deve ser um direito. Até que as comunidades carentes sejam tratadas com o mesmo respeito e dignidade que as áreas mais ricas, nossa Constituição não passará de um ideal distante, e a promessa de igualdade não será mais do que uma ilusão jurídica. É preciso que cada casa, em cada bairro, seja verdadeiramente um asilo inviolável, e que a privacidade de cada cidadão, independentemente de sua classe social, seja respeitada e protegida como um valor fundamental de nossa democracia.