A morte de Dom Angélico Sândalo Bernardino, aos 92 anos, encerra um capítulo significativo da história da Igreja Católica no Brasil. Como um dos últimos representantes da ala progressista forjada durante os anos de chumbo da ditadura militar, sua trajetória confunde-se com momentos cruciais da história recente do país e simboliza o engajamento religioso nas lutas sociais.
Formado sob a influência direta de Dom Paulo Evaristo Arns, figura emblemática da resistência eclesiástica ao autoritarismo, Dom Angélico transformou sua vocação religiosa em instrumento de transformação social. Seu trabalho pastoral na periferia de São Paulo, especialmente em São Miguel Paulista, revela um homem que não se contentou com uma fé contemplativa, mas que mergulhou na realidade concreta dos mais vulneráveis.
A opção preferencial pelos pobres, marca registrada da Teologia da Libertação, encontrou em Dom Angélico um de seus mais autênticos representantes. À frente da Pastoral Operária, construiu pontes entre a Igreja e o movimento sindical emergente do ABC paulista, estabelecendo ali uma amizade com o jovem líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva que perduraria por décadas.
O simbolismo dessa relação não é trivial. Representa a convergência entre a fé comprometida com a justiça social e a política como instrumento de transformação. Não por acaso, foi Dom Angélico quem celebrou a missa para Lula antes de sua prisão em 2018 – momento de extrema tensão política – e quem posteriormente abençoou seu casamento com Janja, numa demonstração de lealdade que transcendeu as circunstâncias.
Como primeiro bispo de Blumenau, levou para Santa Catarina a mesma sensibilidade social que marcou sua atuação em São Paulo, consolidando uma Igreja que não se limita ao espaço do templo, mas que se faz presente nas periferias existenciais.
Sua morte simboliza o ocaso de uma geração de religiosos formados sob a inspiração do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que ousaram interpretar o Evangelho à luz das realidades latino-americanas. Uma geração que, sem negar os fundamentos da fé, compreendeu que a dimensão social é parte indissociável da mensagem cristã.
Em tempos de polarização política e retorno a fundamentalismos religiosos, a trajetória de Dom Angélico nos convida a refletir sobre uma espiritualidade que não foge do mundo, mas que se deixa interpelar por ele. Uma fé que não teme sujar as mãos com a realidade, mas que encontra nesse contato a própria razão de ser.
Que seu legado continue inspirando uma Igreja em saída, como gosta de dizer o Papa Francisco, capaz de ser sinal profético em meio às contradições de nosso tempo.