É com o coração inquieto e a alma vigilante que me debruço sobre o Evangelho desta liturgia (Jo 8,1-11), onde vejo, com crescente indignação, como continuamos repetindo o mesmo teatro farisaico que Jesus desmascarou há dois milênios. Como podemos permanecer indiferentes diante desta cena que se repete diariamente em nossa sociedade que julga, condena e ergue pedras com tanta facilidade?
Observemos o quadro que se desenha nesta passagem: uma mulher arrastada à praça pública, humilhada, exposta. E ao seu redor, homens de dedo em riste, com seus corações endurecidos, prontos para executar uma sentença baseada em uma lei que aplicavam seletivamente. Não é esta a imagem de nossa própria sociedade? Onde escolhemos quem merece misericórdia e quem deve ser publicamente apedrejado?
É revoltante constatar como, até hoje, existem dois pesos e duas medidas! Os fariseus condenavam a mulher pobre e sem prestígio social, mas silenciavam conveniente diante dos pecados de Herodíades, protegida por seu status e riqueza. Uma hipocrisia que persiste em nossos dias, quando apontamos com veemência os erros dos fragilizados enquanto somos complacentes com as transgressões dos poderosos!
O farisaísmo é, de fato, a doença de quem se recusa a olhar no espelho! Quantos de nós não carregamos pedras nos bolsos, prontos para o apedrejamento moral, enquanto nossas próprias consciências permanecem convenientemente cegas aos nossos desvios? Esta seletividade moral é uma chaga social que precisa ser exposta e tratada com urgência.
É inaceitável que em pleno século XXI continuemos com estas pedras nas mãos! Como bem observou Pe. Nilo Luza: “Ultimamente as pedras estão voando de todos os lados contra mulheres, contra pessoas, contra grupos diversos”. E por quê? Porque é sempre mais fácil condenar o outro do que confrontar nossas próprias falhas. É mais confortável apontar o dedo do que estender a mão.
Esta lógica perversa do bode expiatório permanece intacta: os verdadeiros responsáveis pela injustiça social “escondem o espelho para não ver mais o rosto, e assim pensam estar limpos”. Mas a quem estamos enganando senão a nós mesmos?
A cilada armada pelos fariseus a Jesus é a mesma que enfrentamos hoje: escolher entre a rigidez implacável da lei ou a aparente permissividade. Mas Jesus nos mostra uma terceira via – a da misericórdia transformadora que não isenta da responsabilidade, mas que oferece a oportunidade de recomeço.
O que me causa profunda angústia é ver como tantos cristãos se comportam mais como acusadores do que como discípulos daquele que disse: “Não vim para condenar, mas para salvar o mundo”. Como podemos reivindicar o título de seguidores de Cristo enquanto nos recusamos a praticar seu ensinamento mais fundamental?
A verdadeira conversão exige de nós um olhar honesto para o espelho antes de erguer qualquer pedra. Exige reconhecer que somos todos aquela mulher – fracos, falíveis, necessitados de misericórdia. A Igreja não é um tribunal de inquisição, mas um hospital de campanha para pecadores!
O chamado à conversão quaresmal é justamente este: abandonar as pedras que carregamos. Não apenas as não atirar, mas deixá-las cair de nossas mãos. É somente com as mãos vazias que poderemos abraçar o próximo, estender ajuda, construir pontes ao invés de muros.
Diante do mal que nos cerca, precisamos reconhecer nossa parcela de responsabilidade. “O mal é uma denúncia contra nós: não fomos tão bons, sal, luz, fermento”. Nossa omissão, nosso silêncio conivente, nossa moralidade seletiva alimentam as estruturas de injustiça e opressão que tanto criticamos.
Precisamos, com urgência, recuperar a capacidade de indignação genuína – não aquela que aponta para os outros, mas a que nos impulsiona à autorreflexão e à ação transformadora. Precisamos resgatar a misericórdia e a compaixão como valores fundamentais, não como conceitos abstratos, mas como práticas cotidianas.
Que nesta Quaresma possamos experimentar a libertação que vem do encontro com aquele que, em vez de condenar, nos diz: “Eu também não te condeno. Vai e não peques mais”. Estas palavras não são de mera tolerância, mas de profunda transformação! São palavras que devolvem dignidade, que restauram a humanidade, que acendem novamente a chama da esperança.
Irmãos e irmãs, o Reino de Deus não se constrói com pedras de julgamento, mas com mãos que servem e corações que acolhem. Não sejamos cúmplices de uma sociedade que se especializou em julgar e condenar. Sejamos, ao contrário, agentes de uma revolução de misericórdia, começando por nós mesmos.
Que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus – frutos de justiça verdadeira, misericórdia autêntica e amor transformador. Um amor que não teme encarar a verdade no espelho, mas que também não se detém ali, pois sabe que somos chamados não apenas a enxergar nosso rosto pecador, mas a permitir que o olhar de Cristo nos transforme à sua imagem e semelhança.
Padre Carlos