Era uma tarde dessas que o sol resolve dar um show, sabe? O céu todo laranja, quase vermelho, como se alguém tivesse derramado tinta sem querer. Eu tava lá, sentada na beira do rio, os pés balançando perto da água, que corria devagarinho, sem pressa nenhuma. O vento soprava leve, trazendo aquele cheiro gostoso de terra molhada — igual quando eu era pequena e corria no quintal da vó depois da chuva. E aí, do nada, no meio daquele silêncio cheio de barulhinhos — a água, os passarinhos —, a saudade bateu. Bateu forte, tipo um soco que você não espera.
Pensei na Clara, minha amiga de sempre. Aquela que me conhece de cabo a rabo e mesmo assim ainda gosta de mim. A gente cresceu grudada, correndo pelo campo com o cabelo voando, os pés pretos de terra, rindo de qualquer bobagem. À noite, quando a lua aparecia redonda e brilhante, sem nuvem pra atrapalhar, a gente deitava na grama e ficava inventando história pras estrelas. Clara jurava que a mais brilhante era a nossa estrela da sorte. Eu acreditava, claro, porque com ela tudo parecia dar certo.
Mas a vida, né? Ela tem esse jeitinho chato de separar as pessoas. Clara foi embora pra uma cidade grande, cheia de prédio e buzina, pra virar médica — o sonho dela desde que a gente assistiu Patch Adams juntas e ela disse que queria ajudar gente de verdade. Eu fiquei aqui, na nossa cidadezinha onde todo mundo se conhece pelo apelido e o tempo anda devagar. No começo, era ligação todo dia, mensagem de boa noite, mas aí, aos poucos, a coisa foi esfriando. As conversas ficaram curtas, tipo “tá tudo bem?”, e a saudade só aumentou, danada que é.
Tem dia que eu coloco aquele filme bobo que a gente amava, uma comédia romântica que já sei de cor — o mocinho tropeçando na rua, a gente rindo até a barriga doer. Agora eu vejo sozinha, mas juro que escuto a risada dela, meio rouca, meio desengonçada, ecoando no quarto. Ou quando toca Garota de Ipanema no rádio — a gente cantava desafinado no karaokê da esquina —, eu fecho os olhos e quase vejo ela dançando, sem ligar pra quem tava olhando. É uma mistura esquisita, sabe? Saudade que dói, mas que também faz bem.
Nessa tarde, com o sol se escondendo e o céu pegando fogo, o vento parecia trazer a voz dela, rindo de alguma piada idiota que só a gente pegava. A saudade apertava o peito, mas também aquecia, porque lembrar dela é bom demais. Eu via a gente em volta da fogueira, o fogo estalando, o rosto quente, contando histórias até o dia clarear. O coração ficava cheio, mesmo estando tão vazio.
A vida seguiu girando, claro. Clara casou, teve dois filhos — um menino sapeca e uma menina teimosa, que ela jura que puxou o pai, mas eu sei que é o jeitinho dela. Eu fui por outro caminho: terminei a faculdade de letras, comecei a dar aula pras crianças da escolinha aqui, e até escrevi um livrinho de poesia. Clara disse que é o melhor que ela já leu, mas eu sei que é papo de amiga, aquele carinho que não tem preço. A distância nunca apagou o que a gente tinha. Amizade de verdade é assim, né? Não precisa de explicação, ela fica ali, quietinha, esperando a hora de voltar.
E essa hora chegou do jeito mais inesperado. Numa terça qualquer, o celular tocou, e era ela, a voz tremendo: “Tô indo aí visitar a família, topa me encontrar no rio?”. Meu coração disparou tanto que nem sei como respondi. Só sei que disse sim, óbvio.
Quando a gente se viu, foi como se o tempo tivesse dado um looping. Nos abraçamos forte, daquele jeito que diz tudo sem precisar de palavra. Sentamos na margem, jogando pedrinha na água como antigamente, e as histórias vieram aos tropeços no começo, mas logo estavam saindo fácil, como sempre. Ela falou dos filhos, que já tão grandinhos, eu contei do meu sonho louco de viajar pra Itália — quem sabe um dia, né? — e rimos da vez que tentamos fazer bolo e quase botamos fogo na casa.
Teve choro também, porque a saudade guardada por tanto tempo transborda quando encontra um fim. Mas era choro bom, que lava a alma. Ali, com o rio passando e o sol se pondo de novo, eu saquei que amizade é esse tesouro raro que a gente carrega dentro da gente. Não precisa de WhatsApp todo dia nem de promessa exagerada. Ela vive nas memórias, nas risadas que ainda ecoam, na certeza de que, por mais que a vida vire de cabeça pra baixo, a gente sempre se acha.
Enquanto o céu ficava roxo, a gente prometeu não deixar o tempo nos roubar tanto. A vida que leve a gente pra onde for, mas o caminho de volta a gente sempre encontra. Porque amizade é isso: um fio invisível que segura a gente, mesmo quando tudo mais parece solto. E, com um sorriso meio bobo, eu agradeci baixinho pro vento: “Valeu, Deus, pelos amigos. Eles são o maior presente que tem.”
Dando continuidade a oração!