Política e Resenha

ARTIGO – A Tranquila Aceitação de Pessoa diante da Realidade Inalterável (Padre Carlos)

 

 

 

 

Hoje, ao reler o poema “Quando vier a primavera”, de Fernando Pessoa, me vi, mais uma vez, fascinado pela profunda sabedoria e pela serenidade contida nos seus versos. Pessoa, com sua sensibilidade única, nos conduz por uma viagem onde a natureza humana se curva à grandeza da realidade e ao ritmo imutável da existência. Ele nos lembra que, em nossa ânsia de controle e permanência, somos muitas vezes esquecidos da impermanência da própria vida. A morte, para Pessoa, não é o fim temido, mas apenas uma continuidade, uma aceitação do que já é e sempre será.

Ler esses versos é uma forma de compreender algo intrínseco à cultura lusitana, uma herança que ecoa em mim como o som dos ventos do além-mar, trazendo saudades dos tempos de seminário em Belo Horizonte, quando a leitura de Pessoa e outros grandes pensadores portugueses preenchia minhas tardes de reflexão. Não há como negar a ligação que sinto com essa cultura; ainda que as palmeiras e os coqueiros da minha terra encham meus olhos, a saudade portuguesa me corta a alma, seja nos versos de Camões, na prosa de Eça de Queiroz, ou no olhar afiado de José Saramago.

Em “Quando vier a primavera”, Pessoa explora a transitoriedade humana de modo profundo e quase libertador. “A realidade não precisa de mim”, ele escreve, fazendo ecoar a noção de que o mundo é uma realidade em si mesma, que nos engloba, mas jamais depende de nós para existir. Esse desapego não é vazio; é o reconhecimento de que o sentido da vida e da morte não está no ego, mas na ordem do universo. Pessoa não teme a insignificância; ele a acolhe, e esse acolhimento se transforma em uma “alegria enorme”, pois ele compreende que sua morte não altera o ciclo das estações, nem interrompe a chegada da primavera.

Essa aceitação é, talvez, o maior símbolo de liberdade. Pessoa não exige que a eternidade lhe traga significado; ele percebe que o significado é intrínseco à realidade. Ao declarar que “se soubesse que amanhã morria e a primavera era depois de amanhã, morreria contente”, o poeta afirma seu contentamento com a ordem do cosmos, como se dissesse: tudo está no lugar certo, e minha passagem por aqui não precisa ser marcada para que o mundo siga em sua própria direção.

Pessoa vai além, convidando-nos a repensar o que é essencial para um legado. Quando diz que “podem arrasar latim sobre o meu caixão”, ele não se preocupa com o ritual, porque compreende que o valor da vida está na vivência e não na pompa com que ela é encerrada. É um convite à simplicidade e à verdade. Ao colocar-se como alguém para quem as cerimônias são indiferentes, Pessoa nos desafia a olhar para além da vaidade. Ele rejeita o apego à fama póstuma, pois sabe que uma vez terminado o tempo, não há importância em qualquer honraria.

Hoje, quando buscamos relevância e reconhecimento em uma sociedade de imagens e status, o pensamento de Pessoa se torna ainda mais necessário. O poeta nos mostra que nossa grandeza talvez não esteja em deixar um rastro de eternidade, mas em aceitar nossa finitude com gratidão e humildade. Na última linha do poema, ele nos oferece um enigma: “O que for quando for, é que será o que é.” A vida, em sua essência, não precisa de interpretações ou julgamentos; basta aceitá-la como ela é. E ao fazer isso, encontramos, paradoxalmente, a paz. O mundo seguirá com ou sem nós, e esse ciclo, inabalável, é uma verdade que nos liberta.

Fernando Pessoa nos ensina, nesse poema, que a verdadeira liberdade vem da aceitação do inevitável, do fato de que o sentido já existe, independentemente da nossa aprovação ou desejo. Ele nos convida a viver sem a necessidade de criar um propósito eterno, pois tudo o que é real e verdadeiro já está diante de nós. Essa é a “alegria enorme” que ele descreve: saber que tudo está certo, porque tudo é real.