Quem não se emociona ao ouvir as histórias dos jovens que enfrentaram tanques e cassetetes nas ruas de São Paulo ou Rio de Janeiro durante os anos de chumbo? Quem não admira a coragem dos operários que, mesmo sob ameaça de prisão, organizavam greves nos portões das fábricas do ABC? Essas pessoas existiram. Eram de carne e osso. Sangraram, sofreram, foram presas, algumas até morreram. Mas há uma pergunta que não quer calar: por que muitos desses heróis da resistência à ditadura militar não conseguiram o mesmo sucesso nas urnas quando o Brasil finalmente reconquistou sua democracia?
A história é cheia de ironias. E esta é uma das mais dolorosas da nossa política recente. Os mesmos homens e mulheres que tiveram a fibra para enfrentar a repressão militar entre 1964 e 1985, que arriscaram tudo pela democracia, muitas vezes se viram rejeitados por essa mesma democracia quando ela finalmente chegou. É como se o país dissesse: “Obrigado pelo sacrifício, mas não queremos vocês no poder.”
Tenho acompanhado essa história desde os tempos em que, como jovem militânte, participara das assembleias estudantis e piquetes de greve. Vi de perto o brilho nos olhos daqueles líderes quando discursavam para plateias inflamadas. Naquela época, eles eram verdadeiras estrelas em seus círculos. Lembro-me de um líder estudantil da UFBA que, aos 22 anos, conseguia paralisar o campus inteiro com um discurso de 15 minutos. Ou daquele metalúrgico que, mesmo sem estudo formal, falava com tanta convicção sobre injustiças que fazia chorar até os mais durões.
Mas o tempo passou. A ditadura caiu. As eleições voltaram. E muitos desses nomes, que apostávamos que seriam os grandes líderes do Brasil democrático, simplesmente desapareceram do mapa político. Outros conseguiram ser eleitos para cargos modestos, sem nunca alcançar a projeção que pareciam destinados a ter.
O que aconteceu? Foi traição dos eleitores? Injustiça histórica? Nem uma coisa nem outra. Foi, na verdade, o resultado de um descompasso entre as habilidades necessárias para resistir a uma ditadura e aquelas exigidas para vencer em uma democracia.
Pense comigo: o que faz alguém ser um bom líder durante um regime autoritário? Coragem física, sem dúvida. Convicção ideológica forte. Capacidade de falar para plateias já convencidas e inflamar ainda mais sua indignação. Habilidade para organizar ações na clandestinidade. Tudo isso era vital quando o inimigo era um estado repressor.
Mas e numa democracia? De repente, o jogo mudou completamente. Agora, o que conta é a capacidade de falar não apenas para os já convencidos, mas para aquela dona de casa preocupada com a inflação, para aquele pequeno comerciante assustado com impostos, para aquele jovem que só quer um emprego decente. É preciso saber negociar, ceder em alguns pontos, construir alianças com gente que pensa diferente.
Conversei certa vez com um ex-líder estudantil que tinha sido preso e torturado nos anos 70. Ele me disse, com lágrimas nos olhos: “Na ditadura, eu sabia exatamente quem era o inimigo. Era o cara de farda. Na democracia, às vezes o inimigo é aquele senhor simpático que me cumprimenta na rua, mas que vota contra tudo o que acredito.”
Esta é a dura verdade: lutar contra uma ditadura é, em certos aspectos, mais simples do que navegar nas águas turvas da democracia. Na resistência, as escolhas são claras e binárias: você está contra ou a favor do regime. Na democracia, tudo é negociável, tudo é questão de grau, tudo exige capacidade de diálogo e concessão.
Alguns estudos mostram que isso não aconteceu só no Brasil. Na Espanha pós-Franco, na Grécia depois dos coronéis, no Chile após Pinochet – em todos esses lugares, muitos heróis da resistência tiveram dificuldades para se adaptar ao jogo democrático. Não por falta de competência ou compromisso, mas porque são ambientes que exigem habilidades diferentes.
Eu vi de perto como nossos “heróis” muitas vezes eram vistos com desconfiança pelo eleitor médio. “Esse aí é muito radical”, diziam. Ou: “Esse só sabe protestar, não sabe governar”. Injusto? Talvez. Mas compreensível. O brasileiro comum, depois de anos de autoritarismo, queria estabilidade, moderação, previsibilidade. E muitas das nossas lideranças forjadas na luta transmitiam justamente o contrário: ruptura, confronto, transformação radical.
A televisão foi outro desafio imenso. Nas assembleias estudantis ou sindicais, um discurso de uma hora era normal. Na TV, você tem 30 segundos para conquistar o telespectador. Muitos não conseguiram fazer essa transição. Lembro-me de um brilhante líder sindical que, em seu primeiro programa eleitoral, falou tanto sobre “correlação de forças” e “contradições de classe” que minha avó, que estava assistindo comigo, perguntou confusa: “Mas ele quer ser vereador ou professor de faculdade?”
Houve exceções, é claro. Alguns conseguiram fazer a travessia da resistência para a política institucional com maestria. Aprenderam a falar a linguagem do cidadão comum sem renunciar aos seus princípios. Construíram alianças sem se vender. Adaptaram-se às regras do jogo democrático sem cinismo. Mas foram poucos.
Esta é uma história que precisa ser contada com honestidade. Não para diminuir o heroísmo daqueles que lutaram contra a ditadura – eles merecem todo nosso respeito e gratidão – mas para entender que a política democrática tem suas próprias exigências e desafios. E que ser um bom combatente nem sempre te prepara para ser um bom negociador.
Nas minhas andanças pelo Brasil, encontrei muitos desses ex-líderes. Alguns amargos com a “ingratidão” do povo. Outros orgulhosos de seu papel histórico, mesmo que não tenha se traduzido em sucesso eleitoral. E outros ainda que, mesmo sem cargos públicos, continuaram na luta por uma sociedade melhor, agora adaptados às regras democráticas.
O que essa história nos ensina? Que democracia não é apenas um conjunto de regras, mas uma cultura que precisa ser aprendida e praticada. Que nossos heróis são humanos, com virtudes e limitações. E que, talvez, a maior virtude de todas seja a capacidade de se reinventar quando os tempos mudam.
Fico pensando naquela frase do poeta: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Nossos heróis da resistência foram excelentes navegadores em mares tempestuosos. Alguns se perderam quando as águas se acalmaram. Outros encontraram novos rumos. Todos, sem exceção, ajudaram a construir este barco imperfeito mas precioso que chamamos de democracia brasileira.
E isso, ninguém pode lhes tirar.
(Padre Carlos)