Há 120 anos, o mundo recebeu uma alma indomável – Nise da Silveira, a psiquiatra alagoana que viria a transformar radicalmente a forma de tratar os transtornos mentais no Brasil. Nascida em 15 de fevereiro de 1905, em Maceió, numa família de classe média alta, filha do professor e jornalista Faustino Magalhães da Silveira e da pianista Maria Lídia, ela foi incentivada desde cedo a romper com os padrões tradicionais impostos às mulheres. Aos 15 anos, Nise desembarcou na Bahia para estudar na Faculdade de Medicina da Bahia – a primeira instituição médica fundada na América Latina e atualmente parte da UFBA – onde, em 1926, formou-se como a única mulher entre 157 homens, prenunciando uma trajetória marcada pela coragem, inovação e um profundo compromisso com a dignidade humana.
Desde os primeiros passos na medicina, Nise se destacou não apenas pela inteligência e sensibilidade, mas também por sua ousadia em questionar as práticas da psiquiatria tradicional. Em um período em que os tratamentos para doenças mentais eram sinônimo de violência – com o uso indiscriminado de eletrochoque, insulinoterapia, lobotomia e confinamento – ela rejeitou tais métodos desumanizadores. Ao invés disso, abraçou a arte como ferramenta terapêutica, transformando salas de terapia ocupacional em ateliês de pintura e modelagem. “Não éramos meros pacientes, éramos seres com histórias e sentimentos que precisavam ser expressos”, afirmava, enfatizando a importância de tratar cada indivíduo com afeto e respeito, conceitos revolucionários que ainda ecoam na luta antimanicomial contemporânea.
A história de Nise também está entrelaçada com episódios de resistência política e pessoal. Durante o regime autoritário do Estado Novo (1937–1945), quando o governo de Getúlio Vargas endureceu a repressão contra qualquer manifestação considerada subversiva, Nise, leitora voraz de Marx e fervorosa debatente de ideias progressistas, tornou-se alvo do sistema. No alojamento do Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, na Praia Vermelha, onde trabalhava após a morte do pai, ela guardava seus livros e objetos pessoais que, ao serem descobertos por uma enfermeira, foram interpretados como símbolos de uma ideologia “perigosa”. Denunciada e sem direito a um processo justo, Nise foi presa por quase um ano e meio na Casa de Detenção da Rua Frei Caneca, convivendo na mesma cela com figuras marcantes, como Olga Benário – já grávida de Luís Carlos Prestes – e o escritor Graciliano Ramos, que em “Memórias do Cárcere” descreveu seu olhar “perturbador e magnetizante” e ressaltou a determinação inabalável que se escondia por trás de sua compleição franzina. Para Graciliano, Nise era uma mulher de vontade de ferro, cuja postura desafiava os paradigmas de um tempo em que ser mulher e militante significava enfrentar o perigo iminente de represálias estatais.
Após esse período sombrio, Nise retornou ao serviço público no Rio de Janeiro, assumindo seu posto no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, instalado no bairro de Engenho de Dentro. Foi ali que sua revolução terapêutica ganhou forma. Em 1946, diante do que ela via como uma punição disfarçada – os pacientes eram obrigados a realizar tarefas excludentes de limpeza – Nise decidiu transformar a Terapia Ocupacional. Se faltava papel, ela ordenava que se apanhassem jornais, inclusive do Diário Oficial, para que a criatividade não fosse interrompida. Em meio a risos e críticas, ela desafiava colegas que a rotulavam de “dona de gafieira”, um termo pejorativo da época, demonstrando que seu método era, acima de tudo, um ato de resgate da humanidade.
Seu encontro com o inconsciente ganhou nova dimensão quando, em 1957, durante o II Congresso de Psiquiatria em Zurique, ela teve um diálogo marcante com o renomado psiquiatra Carl Jung. Jung, que mais tarde se tornaria amigo e correspondente de Nise, ficou intrigado com as obras produzidas por seus “clientes”. Ao analisar as pinturas, o famoso suíço observou que, embora o primeiro plano revelasse o caos e a agitação dos transtornos, o fundo das obras transbordava uma harmonia surpreendente – um reflexo, segundo ele, do ambiente livre e espontâneo em que os pacientes criavam. “Eles não pintavam para simplesmente distrair-se; pintavam para se reconectar com sua própria essência”, afirmou Nise, consolidando a ideia de que a arte podia ser a chave para a recuperação da identidade e da autonomia.
Em uma entrevista imaginária que transcende o tempo, Nise dialoga com o entrevistador sobre os desafios atuais da saúde mental e a importância da arte:
— “Doutora Nise, como a senhora enxerga o uso da arte como terapia nos dias de hoje, quando as políticas públicas enfrentam cortes e retrocessos que ameaçam as conquistas dos movimentos antimanicomiais?” pergunta o entrevistador.
Com a serenidade de quem já enfrentou os maiores desafios, Nise responde:
— “A arte é a linguagem do inconsciente, o grito silencioso que traduz a complexidade da alma humana. Quando me recusei a submeter meus clientes a métodos violentos, vi na pintura, na escultura e até mesmo no cuidado com os animais – sim, cheguei a criar 23 gatos –, o potencial de transformar o sofrimento em expressão e liberdade. Hoje, quando o Estado tenta reduzir o investimento em políticas de saúde e reerguer modelos que aprisionam a individualidade, eu digo que o verdadeiro poder reside no afeto e na escuta. Cada cor, cada traço, é uma afirmação de que a humanidade não pode ser medida por protocolos frios e desumanos. A cura é feita de diálogo, de respeito pelo outro e da coragem de se expressar sem medo do próprio inconsciente.”
Essas palavras ressoam com a verdade de uma vida dedicada à transformação. Ao longo dos anos, Nise não apenas revolucionou o tratamento psiquiátrico com sua abordagem humanizada, mas também deixou um legado duradouro por meio da criação do Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952, e da Casa das Palmeiras, fundada em 1956, espaços que hoje continuam a inspirar profissionais e ativistas em defesa de uma saúde mental que valorize a criatividade, a expressão e a liberdade. Esses locais, que abrigam acervos com milhares de obras produzidas pelos pacientes, são verdadeiros testemunhos da capacidade transformadora da arte e da importância de um tratamento baseado no afeto e na humanidade.
Além do impacto clínico, o legado de Nise se entrelaça com a cultura e a política brasileira. Em Salvador, onde desembarcou para estudar, e no Rio, onde construiu sua carreira, sua história foi preservada em acervos fotográficos e reportagens de jornais como A TARDE, que, em 2005, dedicou um suplemento especial em homenagem ao centenário da médica, trazendo depoimentos e análises sobre seu pioneirismo. Sua trajetória, marcada por encontros com ícones literários e políticos – como os poetas Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e o dirigente comunista Otávio Brandão –, revela uma personalidade multifacetada, apaixonada pelo conhecimento e comprometida com a luta contra o fascismo, evidenciada ainda em sua participação em reuniões antifascistas durante a ascensão do regime nazista na Europa e o Estado Novo no Brasil.
Hoje, enquanto se debatem intensamente os rumos das políticas de saúde mental e se enfrentam cortes de verbas que ameaçam reerguer práticas de exclusão, o exemplo de Nise da Silveira permanece como um farol de resistência e inovação. Sua obra – celebrada em filmes, documentários e exposições, como o premiado “Nise: O Coração da Loucura”, que contou com a interpretação magistral de Glória Pires – continua a inspirar aqueles que acreditam que a verdadeira transformação ocorre quando o ser humano é acolhido em sua totalidade, com suas dores, suas alegrias e sua capacidade infinita de se reinventar.
Em um cenário onde a memória dos que lutaram por um tratamento digno e humanizado parece ser constantemente ameaçada por interesses políticos e econômicos retrógrados, a mensagem de Nise da Silveira ecoa com força: a arte, o afeto e a liberdade de expressão são elementos essenciais para a cura e para a reconstrução da sociedade. E, assim, cada pincelada, cada obra produzida nos ateliês de Terapia Ocupacional, não é apenas um traço no papel, mas um manifesto de resistência contra a opressão – um convite para que a humanidade jamais seja reduzida a rótulos ou confinada em paredes frias e desumanas.
Nise, que uma vez enfrentou a prisão e o ostracismo por suas convicções, continua a nos ensinar que o poder da transformação reside na coragem de olhar para o interior e de permitir que o inconsciente se manifeste em formas belas e surpreendentes. Enquanto a política tentar apagar legados e reverter conquistas, seu exemplo permanece vivo nos corações dos que acreditam na força do afeto e da arte como instrumentos de libertação. A revolução que ela iniciou há 120 anos é um chamado perpétuo para que, independentemente dos tempos e das adversidades, o ser humano continue a buscar, por meio da criatividade e da empatia, o caminho para a verdadeira cura e para uma vida em liberdade.