Política e Resenha

ARTIGO – Prisioneiros do Tempo: Como o Passado Sequestra Nosso Presente

 

 

 

 

Você já se pegou transportado no tempo por um simples aroma? Um perfume que, sem aviso, te leva de volta àquela tarde de verão há 40 anos? Ou talvez uma música que, ao tocar no rádio durante seu trajeto para o trabalho, evoca lágrimas por razões que sua mente consciente nem compreende totalmente?

Nossa mente opera em uma dimensão onde o tempo cronológico parece irrelevante. Para ela, o passado não é algo empoeirado em prateleiras distantes – é uma presença viva que respira ao nosso lado, pronta para manifestar-se com toda sua força emocional em questão de segundos.

Lembro-me vividamente quando, estava estagiando no curso de filosofia e aconselhando pessoas, me vi paralisado na escola  ao ouvir uma voz semelhante à de minha antiga professora que me humilhou publicamente quando eu tinha apenas 12 anos. Meu corpo reagiu antes da minha mente consciente: suor frio, coração acelerado, respiração curta. O episódio de cinco décadas atrás estava acontecendo agora, para meu corpo. Meus níveis de cortisol dispararam, adrenalina inundou minha corrente sanguínea, e sentimentos de vergonha e inadequação – que eu pensava ter superado há muito – ressurgiram com uma intensidade assustadora.

Foi naquele momento que compreendi visceralmente como somos reféns de nossa própria memória emocional.

O que nosso corpo vivencia não distingue passado de presente quando uma memória traumática é acionada. Aquela palpitação, aquele nó na garganta, aquela tensão nos ombros – todos são respostas fisiológicas reais a algo que nossa mente interpreta como ameaça presente, mesmo quando a situação original ocorreu há 10, 20 ou 50 anos.

O fascinante – e por vezes aterrorizante – da experiência humana é que aquele comentário maldoso feito por um colega de trabalho há uma década pode liberar em seu corpo o mesmo coquetel bioquímico que experimentaria se a ofensa tivesse ocorrido há cinco minutos. Noradrenalina, adrenalina e cortisol inundam seu sistema, preparando-o para uma batalha que, cronologicamente, já terminou há muito tempo.

E então, muitos de nós nos perguntamos: “Por que ainda sinto isso tão intensamente? Por que não consigo simplesmente superar?”

Esta pergunta me foi feita milhares de vezes durante aconselhamentos. A resposta não é simples, mas está profundamente conectada à nossa incapacidade de liberar o passado através do perdão – tanto de outros quanto de nós mesmos.

O não perdão é comparável a uma substância viciante. Quando ruminamos sobre injustiças do passado, nosso cérebro produz substâncias que, paradoxalmente, podem criar um ciclo de dependência emocional. Nos agarramos a ressentimentos como um fumante se apega ao cigarro – mesmo sabendo que nos faz mal, há um estranho conforto na familiaridade daquela dor.

O ressentimento guardado transforma-se numa ferida crônica que drena nossa vitalidade. Um paciente certa vez me confessou: “Padre Carlos, percebi que passei vinte anos dando energia para alguém que nem lembra mais o que me fez.” Esta é a natureza insidiosa do não perdão – um parasita emocional que se alimenta de nosso bem-estar enquanto o hospedeiro que deveria ser punido frequentemente segue em frente, alheio ao estrago que causou.

Nossa relação com o tempo é, portanto, muito mais complexa do que sugere o movimento linear dos ponteiros do relógio. As memórias traumáticas permanecem vivas em nosso sistema nervoso, prontas para serem ativadas por gatilhos que às vezes sequer reconhecemos conscientemente. Um cheiro, uma música, uma expressão facial – e subitamente somos transportados para o epicentro daquela dor antiga, revivendo-a com assustadora fidelidade fisiológica.

É como se nosso corpo nunca tivesse recebido o memorando de que aquele evento específico já passou. A dor emocional não reconhece a passagem dos anos; para ela, o tempo é uma dimensão secundária.

Mas esta mesma atemporalidade da mente, que pode nos prender em ciclos de sofrimento, também carrega em si o potencial para nossa libertação. Assim como uma memória dolorosa pode ser revivida com toda sua intensidade emocional, também podemos reescrever nossa relação com esse passado através da consciência e da prática deliberada do perdão.

O perdão não é um presente que damos ao outro, mas um ato de libertação pessoal. É reconhecer que o passado, embora não possa ser mudado, não precisa determinar nosso presente emocional. É compreender que aqueles hormônios do estresse – cortisol, adrenalina, noradrenalina – não precisam comandar nossa bioquímica cada vez que uma lembrança dolorosa emerge.

Talvez a maior prova da atemporalidade da mente seja justamente esta: nossa capacidade de transformar, no presente, o significado emocional de experiências passadas. Quando finalmente consegui perdoar aquele professor que me humilhou, não mudei o fato histórico, mas transformei completamente minha relação com aquela memória. O evento permaneceu o mesmo; minha resposta emocional a ele, não.

Assim caminhamos, habitando simultaneamente múltiplas camadas temporais, conversando com versões de nós mesmos que existiram décadas atrás, e permitindo que o futuro que imaginamos influencie nossas decisões presentes. Somos seres multitemporais, presos a corpos que existem em um contínuo linear, mas dotados de mentes que transcendem essas limitações.

Ao compreender esta atemporalidade, ganhamos a oportunidade de não sermos mais reféns de nossas memórias, mas autores conscientes de nossa experiência emocional. Podemos escolher se permaneceremos prisioneiros do tempo ou se usaremos essa mesma característica atemporal para construir uma libertação interior.

Esta, talvez, seja nossa maior jornada: navegar pelas camadas do tempo dentro de nós mesmos, reconhecendo que o passado que nos assombra e o futuro que tememos existem, ambos, apenas como construções do presente. E é somente no presente que podemos encontrar a paz que transcende todas as dimensões temporais.

Padre Carlos