(Padre Carlos)
Os meus sapatos não brilham. E não é por descuido. É porque já caminharam demais.
Eles trazem poeiras antigas, daquelas estradas onde os sonhos e os medos andavam lado a lado. Já se molharam em chuvas inesperadas e já esquentaram ao sol de esperanças que pareciam impossíveis. Carregam marcas de muitos caminhos — alguns escolhidos, outros impostos —, mas todos vividos com a alma inteira.
Se você quer mesmo saber quem sou, olhe para os meus sapatos. Neles estão impressas as dores que não couberam nas palavras e as alegrias que quase explodiram o coração. Eles ouviram orações sussurradas no silêncio da madrugada e pisaram firme nos momentos em que o mundo parecia desabar. Foram comigo ao fundo do poço e também ao topo da montanha. E sempre voltaram.
Gente apressada gosta de julgar. Olha para o outro como se a vida fosse uma vitrine, como se tudo estivesse ali, exposto, evidente, transparente. Mas a vida não é assim. A vida é subterrânea. O que vemos é só a ponta de um iceberg chamado história.
Ninguém vê o que vivi. Ninguém sentiu o gosto da minha renúncia, nem o frio das madrugadas em que me questionei se estava no caminho certo. Ninguém conhece as noites em que fui abrigo e as manhãs em que precisei ser forte por fora, mesmo estando quebrado por dentro. Mas meus sapatos sabem. E continuam caminhando.
Julgar o outro é fácil. Exige pouco. Um olhar enviesado, uma frase maldosa, um gesto de indiferença. Difícil mesmo é sentar ao lado, escutar sem interromper, respeitar o mistério que cada um carrega no peito. Isso sim, é tarefa de quem tem coração.
Então, da próxima vez que pensar em me julgar, faça um favor: calce os meus sapatos. Caminhe com eles pelas trilhas que percorri. Sinta onde doem. Experimente o desconforto de seguir mesmo sem chão. Aguente o peso do passado, o cansaço do presente, e o medo — às vezes paralisante — do futuro.
Talvez, então, você não me julgue. Talvez você me compreenda.
E, quem sabe, até se reconheça nos seus próprios sapatos.