Política e Resenha

Deus no Cotidiano: Um Chamado à Libertação e à Justiça

 

 

 

A liturgia do III Domingo da Quaresma nos convida a uma reflexão profunda sobre a presença de Deus em nossa vida cotidiana e seu chamado insistente à libertação e à justiça. Na Primeira Leitura (Ex 3,1-8a.13-15), somos transportados ao deserto, onde Moisés, fugitivo da perseguição egípcia, encontra Deus na sarça ardente. Este não é um encontro casual: Deus se revela diante das necessidades concretas do povo hebreu, escravizado no Egito, e convoca Moisés para liderar sua libertação rumo a uma terra onde corre leite e mel. Essa narrativa não é apenas um relato histórico; ela ressoa como um apelo atual, desafiando-nos a reconhecer a ação divina em meio às opressões de nosso tempo e a assumir nosso papel na construção de um mundo mais justo.

A Revelação de Deus nas Necessidades Humanas

Moisés, um hebreu criado na corte do Faraó, já carregava em si a chama da indignação contra a opressão de seus irmãos. Quando matou um egípcio que maltratava um hebreu e fugiu para o deserto (Ex 2,11-14), ele talvez pensasse que seu papel havia terminado. Mas é exatamente ali, no deserto da fuga e da solidão, que Deus o encontra. A sarça que arde sem se consumir simboliza a presença divina que não se extingue, mas que se manifesta com vigor diante do sofrimento humano. Deus declara: “Eu vi a opressão do meu povo no Egito, ouvi o seu clamor e conheço seus sofrimentos” (Ex 3,7). Ele não é um espectador distante; sua compaixão o move a intervir, chamando Moisés e conferindo-lhe poderes para libertar o povo.

Essa revelação nos ensina que Deus está presente nas realidades mais difíceis de nossa vida. Ele não se limita a templos ou momentos solenes; sua voz ecoa nas periferias, nos clamores dos oprimidos, nas injustiças que ferem a dignidade humana. Como a sarça, sua presença arde em meio às nossas crises, convidando-nos a ouvir e a agir.

O Nome de Deus e Seu Projeto de Vida

Ao se revelar, Deus não apenas se apresenta, mas também entrega a Moisés seu nome: “Eu Sou o que Sou” (Ex 3,14). Esse nome, enigmático e poderoso, está intrinsecamente ligado ao seu projeto de libertação. Diferente dos deuses pagãos, criados e definidos pelos homens, Deus se autodefine como aquele que é e que age em favor de seu povo. Ele promete: “Eu os adotarei como meu povo e serei o Deus de vocês, aquele que tira de cima de vocês as cargas do Egito” (Ex 6,7). Sua identidade é inseparável de sua missão: trazer vida e dignidade onde reinam a opressão e a morte.

Esse projeto não se esgota na saída do Egito. Pelos profetas, como em Isaías 65,17-25, Deus anuncia um futuro de “novo céu e nova terra”, onde não haverá mais choro, morte prematura ou injustiça, e onde o trabalho humano será respeitado e frutífero. Jesus, em perfeita comunhão com o Pai, reafirma essa promessa ao dizer: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Seu ministério, descrito em Mateus 9,35-38, o leva aos excluídos — povoados e periferias —, onde ele se compadece das multidões “cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor” e convoca mais pessoas para sua missão de transformação.

A Missão da Igreja: Libertação Integral

A Igreja, como continuadora da obra de Cristo, é chamada a viver esse projeto de libertação integral. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, nos lembra que “a religião não deve limitar-se ao âmbito privado” (EG, 182). Sua atuação deve ser profética, comprometida com os empobrecidos e desvinculada dos poderes opressores deste mundo. Na América Latina e no Caribe, onde as desigualdades gritam, os cristãos são desafiados a iluminar todos os âmbitos da vida social com a luz do Evangelho. O Documento de Aparecida sublinha que “a opção preferencial pelos pobres exige atenção pastoral voltada aos construtores da sociedade” (DA, 501), destacando que a persistência da pobreza reflete, em parte, a infidelidade de cristãos em posições de poder aos valores evangélicos.

Ser povo de Deus, como nos exorta 1 Pedro 2,9-12, significa viver como “raça eleita, sacerdócio régio, nação santa”, comprometidos com um mundo onde não haja opressão, onde a justiça e o amor ao próximo sejam a norma. Não lutar por essa realidade é profaná-la, é desonrar o nome de Deus, que se revelou como libertador.

Conversão: Um Chamado Urgente

O Evangelho deste domingo (Lc 13,1-9) reforça essa urgência. Jesus, ao comentar as tragédias de seu tempo, questiona se elas são castigos divinos ou frutos de estruturas injustas. Sua resposta é clara: “Se vocês não se converterem, vão perecer todos do mesmo modo”. O pecado não é apenas um ato isolado; é uma rede que nos envolve a todos, e a indiferença diante das injustiças nos torna cúmplices. A parábola da figueira estéril nos alerta: Deus, como o dono da vinha, nos dá novas chances, investindo em nós com paciência. Mas o tempo é finito, e cabe a nós produzir frutos de justiça e solidariedade.

Paulo, na Segunda Leitura (1Cor 10,1-6.10-12), adverte contra a falsa segurança religiosa. Muitos receberam os cuidados de Deus no deserto, mas, por falta de compromisso, não entraram na terra prometida. O chamado à conversão é, portanto, um convite a viver em comunhão com Deus e com os irmãos, rejeitando a exploração e a indiferença.

Conclusão: Frutos para o Reino

A liturgia do III Domingo da Quaresma nos desafia a reconhecer Deus no cotidiano, nas dores e nas esperanças de nosso tempo. Ele nos chama, como chamou Moisés, a sermos instrumentos de sua libertação, lutando contra as “cargas do Egito” que ainda oprimem tantos irmãos e irmãs. Que nossa conversão seja concreta, traduzida em ações que promovam justiça e dignidade. Que sejamos como a sarça ardente: inflamados pelo amor divino, mas não consumidos pelo egoísmo. Assim, produziremos frutos abundantes para o Reino de Deus, tornando-nos verdadeiramente um povo que celebra e vive as maravilhas de seu Nome.