Há momentos em que o passado nos visita com uma intensidade avassaladora, trazendo consigo não apenas memórias, mas um turbilhão de emoções e reflexões. Hoje ao receber de Ana Isabel a notícia que neste 14 de Julho celebramos o dia nacional contra a tortura, fui transportado de volta a uma época de luta, idealismo e camaradagem que, embora distante, permanece vívida em minha memória.
A juventude tem o dom de simplificar o mundo, de tornar claras as distinções entre o certo e o errado. Naqueles tempos de repressão, era fácil identificar os “bandidos” – eram aqueles que silenciavam vozes, que aprisionavam sonhos, que torturavam ideais. Nós, os “mocinhos”, éramos movidos por uma convicção inabalável de que lutávamos pelo lado certo da história.
Sinto saudades daquela clareza, daquele senso de propósito que nos unia. Paulo Pontes, Valdélio, Aninha, Dapievy, Carlinhos Silveira, Tinoquinho – nomes que ecoam em minha mente, rostos que não vejo há mais de quatro décadas, mas cujas vozes ainda ressoam em meus ouvidos. E como não lembrar daqueles que partiram – Zezeu, Anilson e tantos outros que deram suas vidas pela causa em que acreditávamos?
A carta de Haroldo Lima sobre Theodomiro Romeiro Santos, que reencontrei entre nos meus papéis hoje, é um testemunho pungente daqueles tempos sombrios. Theodomiro, condenado à morte aos 18 anos, personifica a brutalidade do regime e a resiliência daqueles que ousaram desafiá-lo. Sua fuga da prisão, após nove anos de cárcere injusto, não foi apenas um ato de libertação pessoal, mas um grito de protesto contra a “intolerância de generais-juízes” e a resistência dos “duros” à anistia ampla.
A trajetória de Theodomiro – da condenação à morte ao exílio, e depois ao retorno como juiz do Trabalho – é emblemática das contradições e transformações do Brasil nesse período. Sua atuação posterior na defesa dos direitos trabalhistas demonstra como muitos de nós, forjados na luta contra a ditadura, canalizamos nosso idealismo para a construção de uma sociedade mais justa através das instituições democráticas.
Ao relembrar essas histórias, percebo que a nostalgia que sinto não é apenas por uma juventude perdida, mas por um tempo em que os desafios, embora terríveis, pareciam mais claros. Hoje, as linhas que separam o certo do errado muitas vezes se mostram borradas, e os inimigos da democracia nem sempre vestem fardas.
No entanto, o legado daquela época permanece. A coragem de Theodomiro, a solidariedade de Haroldo Lima, o compromisso de tantos companheiros com um Brasil mais justo e democrático – tudo isso continua a inspirar e a desafiar as novas gerações.
Talvez a verdadeira lição desses tempos não seja a saudade de uma clareza moral simplista, mas a compreensão de que a luta por justiça e liberdade é contínua e complexa. Os “mocinhos” e “bandidos” de hoje podem não ser tão facilmente identificáveis, mas os valores pelos quais lutamos permanecem tão relevantes quanto antes.
Ao final, o que fica é a certeza de que aqueles anos de luta não foram em vão. Cada companheiro lembrado, cada batalha travada, cada sacrifício feito contribuiu para moldar o Brasil que temos hoje. E, embora ainda haja muito por fazer, podemos olhar para trás com orgulho, sabendo que fizemos nossa parte na longa jornada pela liberdade e justiça.
A nostalgia que sinto é, portanto, não apenas uma emoção pessoal, mas um chamado à ação. Um lembrete de que, assim como Theodomiro transformou sua luta em uma vida de serviço público, cada um de nós tem o dever de continuar o trabalho iniciado há tantas décadas. Pois, enquanto houver injustiça e opressão, o espírito daquela juventude rebelde deve permanecer vivo em todos nós.
Padre Carlos