Política e Resenha

Entre a Filosofia e a Democracia: O Legado Pedagógico do Filme de Walter Salles (Padre Carlos)

 

“Ainda estamos aqui”  

 

Após 40 anos de reconquista democrática, o Brasil ainda convive com as cicatrizes deixadas por duas décadas de um regime militar que marcou profundamente nossa sociedade. No entanto, até os dias atuais, as Forças Armadas negam os crimes perpetrados nesse período – desde desaparecimentos forçados e torturas até assassinatos e exílios, que afetaram a vida de milhares de brasileiros, como no caso de Rubens Paiva, cuja família sequer teve acesso a um atestado de óbito. Exibindo-se como uma instituição autônoma, à margem da vontade popular e da accountability exigida em um Estado democrático, os militares perpetuam uma negação que não só ofende as vítimas, mas também coloca em risco o futuro de nossa democracia. É nesse contexto que o filme de Walter Salles se apresenta como uma poderosa ferramenta pedagógica, destinada a educar, conscientizar e reforçar os valores democráticos pelos quais batalhamos.  

Walter Salles, um dos mais celebrados cineastas brasileiros, é conhecido por obras que exploram as complexidades sociais e históricas do país. A obra cinematográfica, trata de uma produção que, direta ou indiretamente, lança luz sobre os horrores da ditadura militar. O papel pedagógico dessa obra reside em sua capacidade de resgatar a memória histórica e confrontar a sociedade com verdades que muitos prefeririam ignorar. Ao retratar os crimes do regime — sejam eles os porões da tortura ou o silêncio imposto às famílias dos desaparecidos —, o filme transforma números e relatos em histórias humanas, tocando o espectador de maneira profunda e duradoura. 

Memória como Resistência à Ignorância Histórica 

A recusa das Forças Armadas em admitir os erros do passado não é apenas uma questão de orgulho institucional; é um ato que perpetua a ignorância histórica e mantém viva a ameaça de um retorno ao autoritarismo. Nenhum oficial da ativa hoje carrega a culpa direta pelo que aconteceu com Rubens Paiva ou com os milhares de outros mortos, torturados e exilados. No entanto, a instituição como um todo herda essa responsabilidade até que haja um reconhecimento formal dos crimes cometidos. Sem esse “atestado de óbito” da ditadura — um gesto que simbolize o encerramento desse capítulo com verdade e justiça —, o Brasil permanece refém de um passado que se recusa a ser enterrado. 

O filme de Salles, nesse sentido, atua como um contraponto à narrativa oficial de negação. Ele serve como uma aula viva para as gerações que não vivenciaram o regime militar, mostrando os perigos de um poder autoritário e a fragilidade da democracia quando a memória é negligenciada. A arte cinematográfica tem o poder único de humanizar a história, tornando-a acessível e emocionalmente impactante. Ao assistir a essas histórias, o público — especialmente os jovens — é convidado a refletir sobre a importância de permanecer vigilante contra qualquer forma de opressão. 

Um Chamado à Vigilância Democrática 

Mais do que apenas relembrar o passado, o filme de Walter Salles nos ensina que a democracia não é um estado permanente, mas uma conquista que exige manutenção constante. A tentativa de promover o esquecimento, como sugere a postura das Forças Armadas, é um terreno fértil para que o “monstro” da ditadura, tal qual um vampiro ameaçador, volte a assombrar a nação. A ignorância histórica não é um ato de perdão ou reconciliação; é uma condenação à repetição dos mesmos erros. Por isso, a obra de Salles transcende o entretenimento: ela é um ato de resistência contra a amnésia coletiva e um alerta para que a sociedade exija das instituições o reconhecimento pleno dos crimes do passado. 

Esse papel pedagógico também se estende à necessidade de uma educação histórica completa e honesta. O cinema, como ferramenta cultural, complementa o ensino formal ao oferecer uma perspectiva visceral e emocional sobre os eventos da ditadura. Ele nos lembra que as viúvas e órfãos de ontem — privados de seus entes queridos e de respostas — são um símbolo vivo da dívida que o Brasil ainda tem com sua própria história. Enquanto as Forças Armadas se negarem a enfrentar esse passado, cabe à sociedade, guiada por obras como a de Salles, manter viva a chama da memória e da justiça. 

Conclusão: Cinema como Serviço Público 

Em suma, o filme de Walter Salles é muito mais do que uma narrativa cinematográfica; é um instrumento essencial para a educação cívica e a consolidação da democracia brasileira. Ele nos ensina que reconhecer os erros do passado não é sinal de fraqueza, mas de maturidade como nação. Ao dar voz às vítimas e expor as feridas ainda abertas da ditadura, Salles nos convoca a enterrar de vez esse capítulo sombrio, não com esquecimento, mas com verdade e responsabilidade. Só assim poderemos construir um futuro mais justo e humano, onde o monstro do autoritarismo permaneça definitivamente sepultado. Sua obra, portanto, é uma aula magna sobre o poder da memória — e um lembrete de que, em uma democracia, lembrar é resistir.