Política e Resenha

Entre Supremos, Emendas e Crises: A República que Nunca Foi Proclamada

 

 

 

 

O Brasil é um país onde o surreal encontra o cotidiano, e a política, frequentemente, parece mais uma obra de ficção do que uma realidade palpável. A recente tensão entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que envolve emendas parlamentares bilionárias e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), é um exemplo emblemático desse cenário. O que deveria ser um debate sobre princípios republicanos se transformou em um teatro de absurdos que escancara a fragilidade da nossa democracia e o vício estrutural da política brasileira.

Como bem pontuou o Ministro Flávio Dino, vivemos um quadro de inconstitucionalidades que desafiam não apenas a lógica jurídica, mas também a ética pública. Mas, no Brasil, como já aprendemos, o inacreditável não é exceção — é regra.


Orçamento Público: Um Feudo Moderno

Para entender a crise atual, é necessário voltar no tempo e observar como o orçamento público brasileiro foi capturado por interesses individuais e de grupo. Desde 2016, assistimos a uma escalada no controle do Legislativo sobre fatias cada vez maiores dos recursos públicos. O que deveria ser um instrumento de planejamento estratégico e de garantia de políticas públicas se tornou, na prática, moeda de troca para sustentar alianças e perpetuar mandatos.

A questão central é que, em nenhum outro país presidencialista do mundo, o parlamento detém tamanha autonomia para manipular o orçamento como bem entende. O Brasil, mais uma vez, inova negativamente. E a inovação não para por aí: líderes de 17 partidos políticos — sim, 17! — lutam por emendas parlamentares em um festival de interesses divergentes e, muitas vezes, contraditórios. Para efeito de comparação, o número de ideologias políticas legítimas no mundo talvez nem alcance essa cifra.

Essas emendas são distribuídas como prêmios, sem qualquer preocupação com a transparência de sua origem ou o destino final dos recursos. Em muitos casos, sequer se sabe para quais projetos esses bilhões de reais estão sendo alocados. O resultado é um sistema político onde o orçamento público é tratado como propriedade privada, enquanto prefeitos e governadores aguardam, ansiosos, por migalhas para financiar obras de fachada que sustentem suas reeleições.


Um Supremo que Cumpre a Lei? Heresia!

No meio desse caos, o STF, liderado por figuras como o Ministro Flávio Dino, tenta recolocar as coisas no eixo, exigindo que os princípios constitucionais sejam respeitados. E aqui surge o paradoxo mais perverso da política brasileira: quando um magistrado decide aplicar a lei, ele é visto como desestabilizador, um incendiário político. A narrativa é tão absurda que faz parecer que o cumprimento da legalidade é o verdadeiro problema.

Flávio Dino deixou claro que a liberação de recursos de forma indiscriminada e sem controle é não apenas ilegal, mas inconstitucional. Isso porque fere os pilares básicos do artigo 37 da Constituição, que prega legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública. Mesmo assim, sua postura firme gerou atritos significativos entre o Judiciário e o Legislativo, enquanto o Executivo tenta navegar entre esses dois titãs.


Executivo: Refém ou Cúmplice?

Em meio ao embate entre Supremo e Congresso, o Executivo se vê em uma posição de fragilidade extrema. Com uma base parlamentar fragmentada e pouco confiável, o governo oscila entre ceder às pressões do Legislativo e tentar manter um diálogo institucional com o Judiciário. Contudo, esse equilíbrio é precário e, muitas vezes, insustentável.

A dinâmica é simples: o Legislativo busca consolidar seu poder por meio do controle do orçamento, enquanto o Supremo atua como guardião das regras constitucionais. No meio desse fogo cruzado, o Executivo tenta sobreviver. Mas essa sobrevivência tem um custo alto: alianças questionáveis e concessões que enfraquecem a já combalida autoridade presidencial.

A questão é que essa fragilidade não é um fenômeno isolado. Ela reflete um padrão estrutural da política brasileira, onde o Executivo, para se manter no poder, frequentemente precisa abrir mão de princípios fundamentais, enquanto o Legislativo transforma o orçamento em ferramenta de perpetuação de privilégios.


A República que Nunca Foi Proclamada

O debate sobre emendas parlamentares e tensões institucionais revela algo ainda mais profundo: o fracasso histórico em consolidar uma República verdadeira no Brasil. Proclamada em 1889, a República brasileira nunca foi plenamente implementada. Ao invés de uma nação governada pelo interesse público, nos tornamos reféns de oligarquias, interesses corporativos e alianças que priorizam o privado em detrimento do coletivo.

O próprio conceito de república, que deveria significar “coisa pública”, foi esvaziado. Em seu lugar, temos um sistema político onde a captura do Estado por interesses particulares é a norma. E, como se isso não bastasse, o cumprimento da lei – algo que deveria ser a base de qualquer sistema republicano – é tratado como uma afronta aos arranjos políticos.


O Que Está em Jogo?

A crise atual não é apenas mais um capítulo da política brasileira. Ela é um reflexo de um problema maior e mais estrutural: a incapacidade de nossos líderes de compreender que a democracia não é apenas um conjunto de regras a serem seguidas, mas um projeto coletivo que exige compromisso com o bem comum.

Quando bilhões de reais são alocados sem transparência, quando o orçamento público é tratado como feudo parlamentar e quando a aplicação da lei é vista como “criação de crises”, algo está profundamente errado. Mais do que nunca, precisamos de um debate sério sobre os rumos do país e sobre como resgatar os princípios básicos de uma república funcional.


Conclusão: Para Onde Vamos?

O Brasil é um país de crises cíclicas, mas poucas são tão emblemáticas quanto a atual. A tensão entre Legislativo, Executivo e Judiciário não é apenas uma disputa de poder; é uma janela para o futuro da nossa democracia. Se permitirmos que o orçamento público continue sendo tratado como propriedade privada, estaremos consolidando um sistema político onde o interesse coletivo é apenas uma fachada.

O desafio é enorme, mas também inadiável. Precisamos, como sociedade, exigir que nossos líderes retomem o compromisso com a transparência, a ética e o bem público. Somente assim poderemos, finalmente, proclamar a República que há tanto tempo nos foi prometida, mas que até hoje permanece como uma utopia inacabada.