Meus caros amigos e amigas da cultura, permitam-me convidá-los para uma agradável conversa sobre uma joia do nosso cancioneiro, uma melodia que funciona como uma verdadeira máquina do tempo para a alma. Falo de “Estampas Eucalol”, composição sensível de Hélio Contreiras, que ganha contornos ainda mais vívidos na interpretação magistral do nosso Secretário de Cultura e mestre da música de raiz, Xangai.
Esta canção não é apenas música; é um portal. Um portal para um tempo, ali entre as décadas de 1930 e 1950, onde a simplicidade do cotidiano abria espaço para um universo de encantamento. E o passaporte para esse universo vinha, curiosamente, embrulhado junto a um sabonete: o Eucalol. Quem poderia imaginar que da espuma perfumada emergiriam pequenas janelas para mundos fantásticos?
Ah, as famosas estampas Eucalol! Aqueles pequenos cartões coloridos eram muito mais que brindes. Eram sementes de curiosidade plantadas no terreno fértil da infância (e, por que não dizer, também da vida adulta). Inspiradas em temas grandiosos – mitologia grega e romana, passagens históricas marcantes, clássicos da literatura universal –, elas transformavam o ato de colecionar numa deliciosa aventura pedagógica. Cada estampa era um convite: a conhecer Hércules e seus trabalhos, a navegar com os argonautas, a desvendar os segredos das pirâmides ou a cavalgar ao lado de cavaleiros medievais. Era, em sua essência, um estímulo lúdico ao conhecimento, à arte e à cultura. O fascínio por aqueles heróis, deuses e narrativas seculares alimentava sonhos e, sem que se percebesse, expandia os horizontes de quem as juntava com avidez.
É justamente essa atmosfera mágica que a poesia de Hélio Contreiras captura com maestria em “Estampas Eucalol”. A letra nos conduz pela mão do eu lírico, que, embalado pela melodia, revisita o poder transformador da imaginação infantil nutrida por aquelas figurinhas. Ouçam com atenção e sentirão a força dessa fantasia: ele se vê libertando Prometeu, o titã acorrentado; enfrenta o Labirinto para desafiar o Minotauro; escala o Monte Olimpo, morada dos deuses; e, num arroubo de coragem infantil, aventura-se a “roubar” a linda princesa do Rei Lear – uma metáfora belíssima, como bem aponta a análise que inspira este texto, para o primeiro e inocente amor de um menino pela sua professora. É a celebração do poder libertador da criatividade, capaz de nos fazer transcender o ordinário e viver, na mente e no coração, as mais extraordinárias aventuras.
“Estampas Eucalol”, na voz de Xangai, toca numa corda sensível da nossa memória afetiva. Evoca uma saudade que não se veste de tristeza, mas sim de celebração. Celebração de um tempo em que o maravilhamento e a curiosidade pareciam mais acessíveis, talvez menos soterrados pelo ritmo frenético e pelas distrações incessantes da vida moderna que, infelizmente, muitas vezes nos rouba o tempo para sonhar acordado.
Resgatar essa herança, seja através da música, da conversa ou da simples lembrança, é um ato de resistência cultural e afetiva. É reacender a chama da criatividade, tão essencial à nossa humanidade. É um lembrete carinhoso de que a imaginação continua sendo uma ferramenta poderosa para colorir nossos dias, para nos transportar a lugares onde somos soberanos, livres para criar e recriar nossas próprias epopeias.
Que possamos, então, aprender com as crianças que um dia habitaram aquele mundo mágico das estampas Eucalol. Que possamos reencontrar, em meio à complexidade do presente, a simplicidade daquele olhar capaz de ver gigantes em moinhos de vento e universos inteiros em pequenos pedaços de papel colorido. A música de Hélio Contreiras e Xangai nos oferece essa chave. Basta abrir a porta e deixar a imaginação voar.
Quero agradecer ao poeta Hèlio Contreiras e a todos menestréis que resgatam nos arquivos das almas as nossas lembranças e as nossas paixões. Estas são com certeza, as estrelas que um dia pontificaram nossos sonhos de Criança.
Montado no meu cavalo
Libertava prometeu
Toureava o minotauro
Era amigo de teseu
Viajava o mundo inteiro
Nas estampas eucalol
A sombra de um abacateiro
Ícaro fugia do sol.
Subia o monte Olimpo
Ribanceira lá do quintal
Mergulhava até netuno
No oceano abissal
São Jorge ia prá lua
Lutar contra o dragão
São Jorge quase morria
Mas eu lhe dava a mão
E voltava trazendo a moça
Com quem ia me casar
Era minha professora
Que roubei do Rei Lear.