Por Padre Carlos
Introdução
No panorama intelectual do interior baiano, poucos nomes alcançaram a relevância e a amplitude de contribuições de Mozart Tanajura para a historiografia regional. Nascido em Livramento de Nossa Senhora, mas adotando Vitória da Conquista como seu lar definitivo, Tanajura representa um marco fundamental na documentação, preservação e interpretação da história do sertão baiano. Este artigo busca analisar o legado deste importante intelectual que, embora situado geograficamente distante dos grandes centros acadêmicos do país, produziu uma obra de valor inestimável para a compreensão da formação histórica, social e cultural do sudoeste da Bahia.
O Intelectual Multifacetado
Mozart Tanajura não pode ser definido por uma única área de atuação. Sua trajetória revela um intelectual que transitava com desenvoltura por diversos campos do conhecimento: jornalista de ofício, escritor por vocação, poeta por sensibilidade e historiador por comprometimento com a memória de sua região. Esta multiplicidade de talentos e interesses permitiu-lhe desenvolver uma visão holística sobre os fenômenos históricos e culturais de Vitória da Conquista e seu entorno, abordando-os a partir de perspectivas complementares e enriquecedoras.
Sua formação intelectual, embora não estritamente acadêmica nos moldes contemporâneos, revelava-se surpreendentemente atualizada com as correntes historiográficas de seu tempo. Como veremos na análise de suas obras, Tanajura demonstrava familiaridade com importantes referências teóricas e metodológicas da historiografia nacional e internacional, adaptando-as criativamente às particularidades do contexto regional que constituía seu objeto de estudo.
A Sistematização Pioneira da História Conquistense
O marco inicial da contribuição historiográfica de Mozart Tanajura encontra-se na obra “História de Conquista: Crônica de uma cidade”, publicada em 1992. Este trabalho representa a primeira tentativa sistemática de organização da história local, destacando-se não apenas por seu pioneirismo, mas também pela amplitude e rigor metodológico com que foi concebido. A obra resultou de extensivas pesquisas em arquivos locais, entrevistas com famílias tradicionais da cidade e levantamento documental no Fórum João Mangabeira, constituindo um impressionante trabalho de coleta e preservação de fontes históricas que, de outra forma, poderiam ter-se perdido irremediavelmente.
Ao analisarmos a estrutura e conteúdo desta obra inaugural, percebemos que Tanajura superou a tradicional crônica local de caráter meramente descritivo e celebratório, tão comum na historiografia das pequenas e médias cidades brasileiras. Embora não abandone completamente o tom afetivo de quem escreve sobre sua própria comunidade, o autor consegue estabelecer um diálogo produtivo com diferentes campos do conhecimento, transitando com desenvoltura entre história econômica, geografia, política, tradições culturais e expressões artísticas locais.
Esta abordagem multidisciplinar, desenvolvida ainda antes da consolidação dos programas de pós-graduação em História nas universidades regionais, revela uma notável intuição historiográfica e um esforço autodidata de compreensão dos fenômenos históricos em sua complexidade. Tanajura demonstrava compreender que a história local não poderia ser adequadamente apreendida sem considerar suas múltiplas dimensões e interconexões.
Maturidade Historiográfica em “História de Livramento”
Se “História de Conquista” representou o marco inicial de sua trajetória como historiador regional, é em “História de Livramento: A Terra e o Homem” que encontramos a expressão de sua maturidade intelectual. Nesta obra, dedicada à sua cidade natal, Tanajura apresenta uma escrita mais refinada, um aparato conceitual mais sofisticado e uma abordagem analítica mais aprofundada dos processos históricos regionais.
O próprio título da obra, com sua referência à relação entre “A Terra e o Homem”, sugere uma aproximação com a tradição historiográfica associada à Escola dos Annales, particularmente com as contribuições de Fernand Braudel sobre a interação entre geografia e história. Esta influência evidencia-se na atenção que Tanajura dedica aos aspectos geográficos, climáticos e ambientais como fatores condicionantes da experiência histórica das populações sertanejas.
Neste trabalho, o diálogo interdisciplinar iniciado em sua primeira obra expande-se significativamente. O folclore, a cultura material e imaterial, o patrimônio histórico, a vida religiosa e as sociabilidades são integrados em uma narrativa que busca captar a totalidade da experiência histórica local. Esta abordagem, que hoje reconheceríamos como próxima à história cultural e à micro-história, demonstrava um historiador atento às transformações teórico-metodológicas de seu campo de conhecimento, apesar de sua atuação distante dos grandes centros universitários.
Um Legado Compartilhado
É impossível abordar a contribuição de Mozart Tanajura sem mencionar sua frutífera parceria intelectual com Carlos Jeová, outro importante nome da intelectualidade conquistense. Esta colaboração resultou em iniciativas e obras que constituem, como bem apontado pelos especialistas locais, um verdadeiro patrimônio histórico e cultural de Vitória da Conquista. Juntos, estes intelectuais estabeleceram as bases para a documentação, preservação e interpretação da memória regional, criando um legado que seria posteriormente desenvolvido por historiadores profissionais vinculados à academia.
O trabalho conjunto de Tanajura e Jeová representa um importante capítulo na história intelectual do interior baiano, evidenciando como, mesmo antes da interiorização das universidades e da profissionalização da pesquisa histórica, já existiam iniciativas locais significativas de preservação e estudo do passado regional. Essas iniciativas, muitas vezes conduzidas por autodidatas apaixonados pelo conhecimento, constituíram a base sobre a qual posteriormente se estabeleceria a historiografia acadêmica regional.
Temáticas Pioneiras na Historiografia Regional
Um dos aspectos mais notáveis da produção historiográfica de Mozart Tanajura consiste em seu pioneirismo temático. Vários dos temas que ele incorporou em suas obras apenas recentemente têm recebido a devida atenção da historiografia acadêmica regional, o que demonstra sua notável intuição quanto à relevância de determinados objetos de estudo para a compreensão da história local.
Entre estes temas destacam-se a história das tradições populares, o patrimônio cultural material e imaterial, o folclore regional e, de forma mais ampla, a história do sertão como espaço geográfico e cultural dotado de especificidades que merecem ser compreendidas em seus próprios termos. Esta atenção ao regional não como mera curiosidade localista, mas como dimensão fundamental para a compreensão da história nacional em sua diversidade e complexidade, coloca Tanajura em diálogo com importantes correntes da historiografia brasileira contemporânea.
Ao valorizar as manifestações culturais populares, as tradições orais e as formas de sociabilidade características do sertão baiano, Tanajura antecipou abordagens que posteriormente seriam desenvolvidas pela história cultural, pelos estudos de memória e pela história oral. Seu trabalho representa, assim, uma importante ponte entre a tradição cronística local e as abordagens acadêmicas contemporâneas da história regional.
O Acervo como Testemunho de uma Formação Universal
A amplitude dos interesses intelectuais e da formação cultural de Mozart Tanajura encontra-se documentada em seu valioso acervo pessoal, atualmente sob a guarda da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Este conjunto de materiais, que inclui sua biblioteca pessoal, manuscritos inéditos, correspondências e anotações, constitui não apenas um importante recurso para pesquisadores interessados em sua obra, mas também um testemunho eloquente de seu processo autodidata de formação intelectual.
A análise preliminar deste acervo revela um intelectual de horizonte verdadeiramente universal, que mantinha contato com obras de referência nas diversas áreas do conhecimento humanístico e que buscava constantemente atualizar-se quanto às discussões teóricas e metodológicas em curso no campo historiográfico. Seus livros, muitos deles com anotações marginais, evidenciam um leitor atento e crítico, que estabelecia um diálogo constante com os autores que lia e que procurava adaptar seus insights teóricos às particularidades do contexto regional que constituía seu objeto de estudo.
Além disso, o acervo contém obras inéditas, incluindo poemas e textos históricos, que merecem publicação e análise detalhada. A parceria estabelecida entre os guardiões de sua memória e a UESB para a preservação, organização e disponibilização deste material representa um importante passo para garantir que o legado intelectual de Tanajura continue acessível às novas gerações de pesquisadores e ao público em geral.
Considerações Finais: Mozart Tanajura na Historiografia Brasileira
À luz desta análise, podemos afirmar com segurança que Mozart Tanajura ocupa um lugar significativo não apenas na historiografia baiana, mas no contexto mais amplo da historiografia brasileira. Seu trabalho representa um importante capítulo na história da produção de conhecimento histórico no interior do Brasil, evidenciando como, mesmo antes da consolidação dos programas acadêmicos de História nas universidades regionais, já existiam iniciativas locais significativas de documentação, preservação e interpretação do passado.
A obra de Tanajura constitui um elo fundamental entre a tradição cronística local, de caráter muitas vezes memorialístico e celebratório, e a historiografia acadêmica contemporânea, com suas preocupações teóricas e metodológicas específicas. Ao incorporar em seus trabalhos temas e abordagens que posteriormente seriam desenvolvidos pela historiografia profissional, ele contribuiu decisivamente para a consolidação de uma cultura historiográfica regional que valorizasse tanto o rigor metodológico quanto a sensibilidade para as especificidades locais.
O reconhecimento de sua contribuição pela comunidade acadêmica, materializado na preservação de seu acervo pela UESB e nos planos para a publicação de suas obras inéditas, representa uma justa homenagem a este intelectual que dedicou sua vida à preservação e interpretação da memória conquistense. Mais do que isso, constitui um importante passo para a integração de sua obra ao corpus da historiografia brasileira, permitindo que novos pesquisadores possam dialogar com suas contribuições e desenvolvê-las à luz das preocupações contemporâneas da disciplina histórica.
Mozart Tanajura merece, assim, ser lembrado não apenas como um nome importante da cultura local conquistense, mas como um dos pioneiros da historiografia regional no Brasil, cujo trabalho continua a oferecer valiosas contribuições para a compreensão da formação histórica, social e cultural do sertão baiano em sua complexidade e riqueza.
Referências Bibliográficas
TANAJURA, Mozart. História de Conquista: Crônica de uma cidade. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas, 1992.
TANAJURA, Mozart. História de Livramento: A Terra e o Homem. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 2000.