Política e Resenha

O Brasil que Eu Enxergo: Como ‘Os Sertões’, Freyre e Buarque Moldaram Minha Consciência

 

 

Algumas obras transcendem o tempo, moldam consciências e tornam-se marcos inevitáveis na formação de uma identidade nacional. Entre essas, três livros se destacam em minha trajetória como articulista e na maneira como concebo a realidade brasileira: Os Sertões de Euclides da Cunha, Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Cada um deles oferece uma chave única para decifrar as complexidades do Brasil, e juntos formam uma espécie de tríade intelectual que alimenta minha visão crítica sobre nossa nação.

Dessas obras, Os Sertões ocupa um lugar especial, não apenas pelo relato magistral da Guerra de Canudos, mas pelo impacto profundo que teve na consciência histórica do Brasil. Euclides da Cunha, ao transformar o que era para ser uma cobertura jornalística em uma análise sociológica e literária, nos oferece um panorama do Brasil profundo. Aquele Brasil que resiste, que não se dobra facilmente às narrativas oficiais de progresso impostas de fora para dentro.

A experiência de Euclides como jornalista se assemelha ao que busco ao escrever: a busca pela verdade que, muitas vezes, está enterrada nas camadas mais ocultas de nossa sociedade. Sua obra é mais do que uma descrição factual da brutalidade com que o governo republicano esmagou os seguidores de Antonio Conselheiro; é a narrativa de um despertar pessoal e intelectual. O autor, movido inicialmente pelo fervor republicano e pelo preconceito comum à elite da época, descobre no sertão uma realidade muito mais complexa.

Euclides da Cunha se depara com a dignidade dos sertanejos, com a força de resistência de um povo que, até então, havia sido marginalizado e ridicularizado pelos habitantes do litoral. Essa transformação pessoal do autor espelha a maneira como nós, ao mergulharmos no Brasil profundo, podemos rever nossos preconceitos e enxergar a beleza nas contradições do país. Quando Euclides dá voz a esse Brasil ignorado, ele nos ensina que a compreensão do país não pode vir apenas da perspectiva elitista e urbana, mas deve incluir as múltiplas facetas de uma nação heterogênea.

A meu ver, Os Sertões é o ponto de partida para entender a raiz de muitos dos debates contemporâneos. A violência com que o sertanejo foi tratado e a sua marginalização antecipam o preconceito ainda enraizado contra o nordestino, muitas vezes estigmatizado pelas mesmas forças que, hoje, se alinham à extrema-direita e às visões excludentes da modernidade.

Assim como Euclides, Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, nos oferece um retrato da complexidade social do Brasil colonial. Seu estudo das relações entre senhores e escravos revela as profundas cicatrizes que a escravidão deixou na formação de nossa identidade. Freyre nos mostra que, por trás da fachada de cordialidade que muitos associam ao Brasil, há uma história de dominação, violência e resistência. Ele explora as nuances culturais que emergem desse encontro brutal entre Europa, África e América, lançando luz sobre a formação de um povo mestiço, marcado pela desigualdade, mas também pela fusão cultural.

Por sua vez, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, completa essa trilogia ao examinar a gênese de nossas instituições e mentalidades. A sua crítica à “cordialidade” brasileira, tão celebrada por alguns, revela as contradições de um país que, ao mesmo tempo em que se orgulha de sua hospitalidade, esconde um histórico de autoritarismo e exclusão. Buarque de Holanda expõe a fragilidade de nossas instituições democráticas e o desafio permanente de construir uma nação baseada em direitos e não em privilégios.

Essas três obras, em conjunto, moldaram minha maneira de pensar o Brasil. Elas me ensinaram que a realidade brasileira é muito mais complexa do que os discursos simplistas podem sugerir. O que Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda nos oferecem é uma janela para enxergarmos além das aparências, para entendermos as raízes de nossos problemas, mas também as potencialidades que emergem dessa complexidade.

Os Sertões, em particular, me impacta pela maneira como Euclides transforma o relato de uma guerra sangrenta em uma reflexão sobre o que é ser brasileiro. Ele não apenas denuncia a violência física e moral contra o povo de Canudos, mas nos desafia a questionar os paradigmas de “civilização” e “progresso” que, até hoje, permeiam o discurso oficial sobre o Nordeste e outras regiões marginalizadas. A obra nos chama a olhar para o Brasil profundo com olhos de curiosidade e respeito, reconhecendo que a verdadeira riqueza do país reside em sua diversidade e na resistência de seu povo.

Esses três autores, com suas abordagens distintas, me ajudaram a compreender que a luta por uma identidade nacional justa e inclusiva é um processo contínuo. Ao revisitar suas obras, somos lembrados de que o Brasil que desejamos construir não pode ignorar o Brasil profundo. E esse é um ensinamento que carrego em cada palavra que escrevo, em cada reflexão que faço sobre nossa realidade.