Política e Resenha

O “Escudo da Imunidade” e o Sequestro do Orçamento Público

 

 

Vivemos tempos em que a democracia brasileira enfrenta novamente um teste de resistência. O recente embate entre o ministro Flávio Dino e o deputado Sóstenes Cavalcante não é mero desentendimento institucional, mas sintoma de uma doença crônica que corrói nosso tecido republicano: a apropriação privada do que é público.

É revoltante, mas não surpreendente, que um parlamentar use sua posição para ameaçar romper acordos sobre emendas bilionárias como instrumento de barganha política, vinculando-as à anistia para aqueles que atentaram contra as instituições democráticas. Mais grave ainda é ver a tentativa de esconder-se sob o manto sagrado da imunidade parlamentar quando questionado sobre essa conduta.

A imunidade parlamentar foi concebida como instrumento de proteção da democracia, não como salvo-conduto para práticas que ferem o interesse público. Quando deputados usam prerrogativas constitucionais para blindar comportamentos que violam a transparência orçamentária, estamos diante de uma perversão dos valores republicanos que deveriam nortear o mandato parlamentar.

O ministro Dino acertou ao rejeitar essa alegação vazia. O que está em jogo não são meras formalidades jurídicas, mas o destino de bilhões de reais que pertencem ao povo brasileiro. Recursos que deveriam construir escolas, hospitais e infraestrutura essencial não podem ser tratados como moeda de troca em jogos de poder nos bastidores do Congresso Nacional.

As “graves zonas de incerteza” sobre as regras orçamentárias, mencionadas no caso, não são acidentais – representam a persistência de um sistema deliberadamente opaco, projetado para dificultar o controle social. O chamado “orçamento secreto”, mesmo após sucessivas tentativas de regulamentação, continua alimentando relações promíscuas entre Executivo e Legislativo.

É inadmissível que, em pleno século XXI, com toda tecnologia disponível para transparência, ainda tenhamos que lidar com esquemas que transformam verbas públicas em instrumentos de cooptação e clientelismo. Cada real desviado desse propósito representa um remédio que não chegou ao posto de saúde, uma carteira escolar que não foi instalada, um investimento em segurança que não se materializou.

O Supremo Tribunal Federal cumpre seu papel constitucional ao exigir esclarecimentos e reafirmar que nenhuma prerrogativa pode servir de escudo para práticas que comprometam a integridade do orçamento público. Mas não podemos esperar que apenas decisões judiciais resolvam este problema estrutural.

Precisamos de uma verdadeira revolução na cultura política brasileira. Os cidadãos devem exigir absoluta transparência na alocação de cada centavo público. Parlamentares devem compreender que foram eleitos para servir ao interesse coletivo, não para negociar emendas em benefício próprio ou de seus grupos políticos. O Executivo deve implementar mecanismos robustos de acompanhamento e avaliação do gasto público.

A democracia não sobrevive em ambientes onde o orçamento público é sequestrado por interesses particulares. A decisão de Dino é um passo importante, mas o caminho é longo. Somente com vigilância constante e participação cidadã ativa poderemos transformar nossa justa indignação em mudanças concretas que devolvam ao povo o controle sobre seus próprios recursos.

O Brasil que queremos não admite mais a privatização do que é público, nem tolera a transformação de prerrogativas democráticas em escudos para comportamentos antidemocráticos. É hora de cada brasileiro assumir seu papel nessa luta pela regeneração de nossas instituições.

 

Padre Carlos