Por Padre Carlos
O nome de Carlo Maria Martini permanece, até hoje, como uma referencia de esperança, lucidez e profecia dentro da Igreja Católica. Arcebispo de Milão por mais de duas décadas, biblista renomado, intelectual de peso e, sobretudo, pastor com o cheiro de seu rebanho, Martini foi — e continua sendo nas ações daqueles que inspirou — uma das vozes mais influentes da Igreja pós-conciliar. Sua importância se revelou não apenas pela densidade teológica, mas sobretudo pela coragem como tocou nas feridas mais delicadas da instituição e pela honestidade como apontava os limites e contradições da própria Igreja que tanto amava.
Não é exagero afirmar que, sem Martini, talvez não houvesse Francisco. O Papa argentino, que surpreendeu o mundo com sua simplicidade evangélica e sua agenda de reformas, foi herdeiro direto do sonho martininiano. Quando pensamos no levantamento do segredo pontifício sobre casos de abuso sexual, no impulso para uma Igreja pobre para os pobres, na crítica aberta ao clericalismo, na abertura ao debate sobre o papel das mulheres, e na insistência em processos sinodais e colegiais, podemos enxergar claramente o fio que uniu os dois jesuítas.
Martini era a voz do aggiornamento (atualização) de João XXIII que, após o Concílio Vaticano II, muitos esperavam ver florescer plenamente. Contudo, a virada conservadora dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, embora rica em outros aspectos, representou uma freada no processo de renovação. Martini, fiel ao espírito do Concílio, tornou-se um “cardeal incómodo”, como tantos o chamaram, não porque desejava romper com a tradição, mas porque desejava escutá-la à luz dos sinais dos tempos.
Num memorável sínodo europeu em 1999, Martini listou temas que considerava urgentes: democracia interna na Igreja, protagonismo dos leigos, a presença feminina, o desafio da sexualidade e do matrimônio, a relação entre lei civil e moral cristã. Questões ainda hoje incômodas e amplamente debatidas, mas que Martini, com humildade e coragem, colocava sobre a mesa. Ele sabia que uma Igreja que não se abre ao diálogo com o mundo corre o risco de falar apenas para si mesma — e de tornar-se irrelevante.
A herança de Martini não se restringe, porém, a suas ideias: ela vive em seu estilo pastoral. Ele foi um cardeal que não tinha medo do confronto, mas sempre privilegiava o encontro. Um homem que, nas noites de Milão, caminhava pelas estações de trem para ouvir os jovens e os sem-teto. Um bispo que lia com atenção a Bíblia, mas também os jornais e os corações dos homens e mulheres de seu tempo.
O Papa Francisco, quando convocou uma Igreja em saída, sinodal e misericordiosa, honrava Martini. Ele não chegou a realiza plenamente todos os sonhos do cardeal milanês, mas os recolocou no centro da vida eclesial. O levantamento do segredo pontifício, não é apenas uma medida jurídica: é um gesto simbólico que marca o fim de uma cultura do encobrimento e a abertura para uma Igreja transparente, como Martini sonhava.
Se olharmos para trás, percebemos que a Contra-Reforma, por todo o bem que realizou na purificação interna da Igreja, acabou também instalando mecanismos de defesa, fechamento e controle que atravessaram os séculos. Martini foi uma das consciências críticas que apontou o esgotamento desse modelo, propondo uma Igreja menos defensiva e mais missionária. Francisco, seu irmão jesuíta, acolheu o bastão — e mesmo sob críticas, tentou avançar, ciente de que a conversão pastoral era longa e exigia paciência histórica.
Que não nos enganemos: Martini morreu sem ver o novo aggiornamento, mas plantou sementes profundas. Quando Francisco falava, o eco de Martini ressoava. E quando nós, católicos e cidadãos, exigimos da Igreja abertura, justiça, inclusão e misericórdia, estamos, consciente ou inconscientemente, respondendo ao apelo de um homem que foi, como disseram alguns, “um Papa que não foi Papa”.
Martini nos lembra que reformar não é destruir, mas resgatar o Evangelho em sua frescura. Francisco nos mostrou que essa tarefa era árdua, mas possível. Cabe a nós, Igreja e povo de Deus, não deixar que a memória de Martini se transforme apenas em saudade — mas que continue a ser fermento de transformação.
Como diria o próprio Martini: “O futuro já começou”. Nós estamos apenas tentando alcançá-lo.