Política e Resenha

Pituba, Amaralina e Outros Mapas do Coração: Um Inventário das Minhas Memórias 

 

 

Pituba de antigamente. Foto: Arquivo A Tarde.

 

Ah, os amigos da infância e da juventude… Quem diria que um dia seriam apenas memórias guardadas em uma caixinha de presente, junto com fotos desbotadas e cartas nunca enviadas? Na Pituba, onde o sol parecia mais dourado, e no Nordeste de Amaralina, onde o vento trazia notícia do mar, os dias eram feitos de brincadeiras e vadiagem, risadas sem motivo e promessas de que seríamos amigos “para sempre”. Mas o tempo, esse velho sábio irônico, riu de nossas certezas e nos espalhou como sementes ao vento. 

Lembro dos meninos do bairro, aqueles companheiros de estripulia na rua de terra, cujos nomes hoje confundo, mas cujas vozes ainda ecoam nas esquinas da memória. Tínhamos códigos secretos, esconderijos debaixo das bananeiras de Sr. Edézio e um pacto não escrito de liberdade. As Rua da Pituba era nosso reino. Ali, debaixo da velha Amendoeira — que resiste até hoje, teimosa —, dividíamos merendas e sonhos malucos. A árvore testemunhou nossas brigas por besteira, nossas primeiras paixonites e aquele medo coletivo do homem que tomava conta do pomar de Sr. Juventino, que gritava se alguém chegasse perto demais da cerca. 

Depois vieram os amigos da militância política, os idealistas de camiseta surrada e livros sublinhados. Nos reuníamos em salas apertadas do Nordeste de Amaralina, alguns tinham sido presos políticos e tiramos o maior respeito e admiração por eles, discutíamos o futuro do mundo como se fôssemos donos do destino. Tínhamos raiva do que era injusto e fé no que poderia ser melhor. Hoje, alguns seguem lutando, outros trocaram os panfletos por pastas de trabalho, mas ainda carregam no olhar aquele fogo breve da juventude. 

E havia o grupo da Igreja, os amigos da CVX, dos retiros em Mar Grande, dos grupos de jovens e dos segredos confessados em sussurros. Rezávamos, cantávamos, e sonhávamos com uma Igreja progressista que os Jesuítas apresentavam, quando o padre não estava olhando, contávamos piadas que nos faziam cair no chão de tanto rir. Naquela época, a fé era menos sobre dogma e mais sobre justiça, luta e uma fé encarnada — um calor de comunidade que até hoje me aquece em dias frios. 

Mas o tempo, esse eterno devorador de sonhos, não perdoa. As casas e prédios da Pituba ganharam muros altos, as amendoeiras parecem mais solitárias, e o pomar da fazenda Pituba não existe mais, deu lugar ao Parque da Cidade. As folhas do passado caíram em solos diferentes: alguns amigos ficaram por perto, outros sumiram em cidades distantes, e uns poucos viraram estrelas antes da hora. 

Quando passo pelas Ruas da Pituba ou vejo pela TV o Nordeste de Amaralina, sinto uma saudade que dói e acalenta ao mesmo tempo. As crianças que correm por ali, naquela esquina entre a rua Rio de Janeiro e São Paulo, não sabem que aquele chão guarda histórias de gente como eles, que também achava que o mundo cabia num quintal. As Bananeiras não balançam mais seus troncos, mais a saudade no meu peito fala alto como se dissesse: “Eu ainda lembro”. E eu, de volta àquele lugar, me pergunto: será que as raízes das Amendoeiras sentem falta das risadas que um dia abraçaram? 

Mas não se engane: saudade não é tristeza. É gratidão vestida de melancolia. Essas memórias são um tesouro, são uma referência que trago dentro de mim. Me lembram que, mesmo longe, aqueles amigos ainda me habitam. Carrego seus conselhos nas escolhas, suas manias nos gestos, suas piadas nas horas sem graça. A militância me ensinou a não calar; a Igreja, a escutar; o bairro, a compartilhar. 

Não dá para voltar no tempo — e talvez nem devêssemos. Afinal, o que seria de nós sem a doce ilusão de que “antigamente” era melhor? Mas hoje, quando vejo jovens debaixo de uma árvore qualquer, sorrio e penso: “Que eles tenham sorte de viver amizades como as nossas”. Amizades que não precisam de Wi-Fi, que sobrevivem a erros e silêncios, que se renovam num “oi” depois de anos. 

Então, aqui fica meu brinde: às tardes de futebol com gol de chinelo, aos debates inflamados que duravam madrugadas, a espiritualidade Inaciana que se tornou modo de vida. Às folhas que o vento levou, mas que um dia dançaram juntas. E as Amendoeiras, velhas guardiãs, que insiste em ficar de pé, lembrando a qualquer um que passar: aqui, uma vez, houve amor. 

Porque no fim, amigos, é isso que fica: não o tempo que perdemos, mas o que vivemos. E que sorte a nossa, hein? Tivemos a Pituba, o Nordeste de Amaralina, e um punhado de almas que nos fizeram acreditar que a vida — com todas as suas mudanças — sempre valerá a pena.