Em um país que se vangloria de sua diversidade e acolhimento, é inaceitável que ainda testemunhemos diariamente a exclusão sistemática das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Hoje, 2 de abril, marca o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, data que nos convida não apenas à reflexão, mas sobretudo à ação transformadora.
Estabelecida em 2007, esta data deveria representar muito mais que um simples lembrete anual. Deveria ser a materialização de um compromisso social permanente. No entanto, o que vemos? Uma sociedade que ainda falha em compreender as necessidades básicas de mais de 2 milhões de brasileiros autistas, segundo estimativas recentes.
A realidade é crua e dolorosa: apesar da Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, continuamos vendo escolas que rejeitam matrículas, empregadores que discriminam talentos e espaços públicos inacessíveis. A legislação existe no papel, mas sua efetivação prática permanece distante para milhares de famílias.
Os transtornos do espectro autista manifestam-se nos primeiros anos de vida e acompanham a pessoa por toda sua existência. Não é uma “fase” que passa, nem uma “escolha” de comportamento. É uma condição neurológica que afeta a forma como a pessoa percebe e interage com o mundo. Esta compreensão básica ainda escapa a grande parte da população – inclusive a profissionais que deveriam estar preparados para o acolhimento adequado.
É revoltante constatar que muitas crianças autistas ainda recebem diagnósticos tardios ou inadequados, perdendo anos preciosos de intervenção precoce. Enquanto isso, famílias inteiras são deixadas à própria sorte, sem suporte do Estado, navegando sozinhas em um sistema de saúde fragmentado e excludente.
A diversidade do espectro é imensa – desde pessoas com altas habilidades cognitivas até aquelas que necessitam de apoio constante em todas as atividades diárias. Esta heterogeneidade exige um sistema de suporte igualmente diversificado, com profissionais capacitados e estruturas adaptadas. No entanto, o que temos é um modelo único e rígido, que tenta encaixar todas as pessoas em um mesmo protocolo de atendimento.
As intervenções psicossociais baseadas em evidências científicas existem e funcionam! Terapias comportamentais adequadas, programas de capacitação para familiares e estratégias educacionais adaptadas podem transformar radicalmente a qualidade de vida das pessoas autistas. Então por que ainda vemos tantos serviços públicos e privados oferecendo abordagens ultrapassadas ou sem comprovação científica?
O sistema educacional brasileiro, que deveria ser o principal agente de inclusão, frequentemente se revela o primeiro espaço de exclusão. Professores sem formação adequada, escolas sem estrutura e currículos rígidos criam barreiras invisíveis mas intransponíveis. Enquanto isso, o discurso oficial celebra uma “inclusão” que, na prática, muitas vezes significa apenas a presença física do aluno autista em sala de aula, sem real participação ou aprendizado.
No campo do trabalho, a situação não é menos alarmante. Pessoas autistas adultas enfrentam taxas de desemprego muito superiores à média nacional, apesar de muitas possuírem habilidades extraordinárias que poderiam enriquecer qualquer ambiente profissional. O mercado insiste em valorizar apenas um tipo específico de sociabilidade e comunicação, ignorando talentos e potencialidades que fogem ao padrão neurotípico.
Mas nem tudo está perdido! Existem exemplos inspiradores de transformação social pelo país. Escolas que realmente abraçaram a neurodiversidade, empresas que descobriram o valor da inclusão genuína, comunidades que se organizaram para criar redes de apoio efetivas. Estas iniciativas nos mostram que é possível construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva – não por caridade ou obrigação legal, mas pelo reconhecimento do valor intrínseco de cada ser humano em sua singularidade.
É hora de transformar nossa indignação em ação concreta. Precisamos exigir:
- Formação adequada para todos os profissionais que atuam com pessoas autistas – de médicos a professores, de assistentes sociais a empregadores.
- Implementação efetiva das políticas públicas já existentes, com mecanismos claros de fiscalização e responsabilização.
- Financiamento adequado para pesquisas e serviços especializados, garantindo que intervenções baseadas em evidências estejam disponíveis para todos, não apenas para quem pode pagar.
- Campanhas permanentes de conscientização que vão além de símbolos e cores, promovendo real compreensão sobre a neurodiversidade.
- Participação ativa das próprias pessoas autistas na elaboração de políticas e serviços – nada sobre eles sem eles!
O autismo não é uma condição a ser “curada” ou “superada”, mas uma forma diferente de experimentar e interagir com o mundo. Nossa sociedade só será verdadeiramente desenvolvida quando compreender que a diversidade neurológica é tão fundamental quanto a diversidade cultural ou étnica.
Que este 2 de abril não seja apenas mais um dia de conscientização superficial. Que seja um marco de compromisso real com a transformação de nossas instituições, nossas atitudes e nossas práticas cotidianas. A verdadeira inclusão não se constrói com símbolos coloridos ou discursos bem-intencionados, mas com ações concretas e permanentes.
O tempo de esperar já passou. É hora de agir. Por um Brasil que não apenas tolere, mas que celebre e potencialize todas as formas de ser e estar no mundo. Um Brasil verdadeiramente inclusivo não é apenas possível – é urgentemente necessário.