Há uma crise silenciosa corroendo os alicerces das famílias modernas. Não é a falta de dinheiro, a rotina exaustiva ou a invasão das telas. É algo mais profundo e paradoxal: a incapacidade de muitos pais de dedicar alguns minutos por dia para contar uma história aos filhos. Enquanto a ciência celebra os benefícios cognitivos e emocionais dessa prática milenar, adultos seguem enterrados em desculpas — “não sei contar”, “não tenho tempo”, “não vejo utilidade”. Mas, no fundo, a questão não é sobre tempo ou habilidade. É sobre prioridade.
A Magia das Histórias: Muito Além dos “Era Uma Vez”
Contar histórias não é um mero passatempo. É um ato de resistência contra a desconexão. Quando um pai ou mãe senta com uma criança e mergulha em um conto, está construindo pontes: entre gerações, entre realidades, entre corações. Estudos da psicologia infantil revelam que essa prática estimula a criatividade, fortalece o vínculo afetivo e desenvolve a empatia. Crianças que ouvem histórias regularmente tendem a lidar melhor com conflitos, expressar emoções com clareza e confiar mais nos pais.
Mas os números são cruéis. Pesquisas indicam que mais de 60% dos pais brasileiros admitem não ler ou inventar histórias para os filhos. Alguns alegam cansaço, outros, falta de repertório. Há ainda os que reduzem a experiência a uma “obrigação chata”, preferindo delegar a tarefa a desenhos animados ou aplicativos. O que esses pais não percebem é que, ao abrir mão desse ritual, estão perdendo a chance única de se tornarem heróis nas narrativas que seus filhos levarão para a vida toda.
A Desculpa do Século: “Não Tenho Tempo”
A frase soa como um mantra moderno: “Não tenho tempo”. Repetida em consultórios, reuniões e jantares em família, ela esconde uma verdade incômoda: tempo é questão de escolha, não de fatalidade. Uma história infantil não precisa durar horas. Cinco minutos de atenção plena — sem celular, sem pressa, sem multitarefas — são suficientes para que uma criança se sinta vista e amada. O problema é que muitos pais confundem “estar presente” com “estar no mesmo ambiente”.
Há, claro, exceções. Pais que trabalham em três turnos, mães solo sobrecarregadas, cuidadores que mal conseguem respirar. Mas mesmo nesses casos, a história pode ser adaptada: um áudio enviado durante o intervalo do trabalho, uma ligação rápida antes de dormir, um desenho improvisado no guardanapo do restaurante. O que importa não é a perfeição, mas a intenção.
“Não Sei Contar Histórias”: O Medo de Não Ser Bom o Suficiente
Alguns pais fogem da responsabilidade de narrar por insegurança. “Não sou criativo”, “minhas histórias são sem graça”, “vou traumatizar a criança”. Esse medo, porém, é um equívoco. Para uma criança, a voz dos pais é a primeira e mais importante trilha sonora da existência. Ela não quer enredos complexos ou efeitos especiais — quer o calor do colo, a entonação familiar, a sensação de que, naquele momento, o mundo gira em torno dela.
Histórias não precisam ser originais. Podem ser lembranças da infância dos pais, relatos do dia a dia reinventados com fantasia, ou até a descrição de um sonho. A chave está na entrega, não na técnica.
Quando a Falta de Tempo é, de Fato, Falta de Amor
A afirmação é dura, mas necessária: se um pai ou mãe nunca encontra brechas para contar uma história, talvez precise revisar suas prioridades. Amor não se mede por horas acumuladas, mas por momentos de conexão genuína. Uma criança não lembrará quantos presentes recebeu ou quantas viagens a família fez — lembrará das vozes que a acalmaram nas noites de medo, dos personagens inventados que a fizeram rir, da segurança de saber que, na infância, havia um porto seguro chamado “conto de ninar”.
Negar esse direito aos filhos é, sim, uma forma de negligência afetiva. Não por maldade, mas por distração. Vivemos em uma sociedade que glorifica a produtividade e menospreza a presença. E assim, muitos pais — sem perceber — trocam o papel de narradores pelo de espectadores passivos da própria família.
Como Resgatar o Ritual Perdido: Dicas para Pais Reais
- Use a tecnologia a seu favor: Grave vídeos curtos contando histórias para dias corridos.
- Transforme rotinas em narrativas: A hora do banho ou do jantar pode virar uma aventura.
- Deixe a criança liderar: Peça para ela inventar parte da história — isso estimula a cumplicidade.
- Abrace a simplicidade: Uma história de três frases, contada com carinho, vale mais que um livro caro lido sem alma.
Conclusão: O Amor é Um Verbo, e Contar Histórias é Seu Sinônimo
No final, não há desculpas que resistam ao poder transformador de uma história bem contada. Ela não exige talento, apenas entrega. Não demanda tempo extra, apenas atenção. E, acima de tudo, não é um favor que os pais fazem aos filhos — é um presente que dão a si mesmos: a chance de serem lembrados não como provedores, mas como companheiros de jornada.
Se falta tempo, crie-o. Se falta repertório, invente. Mas não deixe que a infância de seus filhos vire uma página em branco — porque, um dia, eles crescerão. E quando você quiser contar uma história, pode ser tarde demais.