Política e Resenha

Roma Negra: O Coração Pulsante da Identidade Afro-Brasileira

 

Por Padre Carlos

Há nomes que, por sua força evocativa, transcendem a simples designação geográfica e se tornam símbolos de resistência, espiritualidade e identidade. “Roma Negra” é um desses nomes. Cunhado pela genialidade e visão espiritual da ialorixá Mãe Aninha, este conceito não é apenas uma metáfora poética; é a chave para desvendar a alma de Salvador e, por extensão, um pilar fundamental da identidade cultural brasileira. Mais do que um epicentro religioso, a “Roma Negra” é um manifesto vivo da resiliência e da riqueza do legado africano em terras brasileiras.

A escolha do termo “Roma Negra”, proferida por Mãe Aninha no início dos anos 1920, não foi acidental. Ao compará-la à capital do catolicismo, a ialorixá buscava conferir a Salvador um status de centralidade espiritual e difusora, não de dogmas católicos, mas dos cultos de matriz africana. Era uma afirmação poderosa em uma época em que essas religiões eram marginalizadas e perseguidas. O reconhecimento acadêmico posterior, notadamente por Edson Carneiro em “Negros Bantus”, apenas consolidou essa imagem, elevando Salvador ao patamar de “capital do candomblé” fora do continente africano. Essa alcunha, portanto, carrega em si o peso da história, da resistência e da validação de uma fé e de uma cultura.

No cerne dessa “Roma Negra” está a figura imponente de Mãe Aninha, Eugênia Ana dos Santos. Fundadora do emblemático Ilê Axé Opô Afonjá, hoje um Patrimônio Histórico Nacional, ela personificou a visão de Salvador não como um mero espaço físico, mas como um “nexus vivo” – um ponto de conexão intrínseca entre o plano humano e o divino. Sua liderança como ialorixá fortaleceu a presença e a centralidade dos orixás na vida cotidiana e cultural da Bahia, inspirando gerações a reconhecer e valorizar essa espiritualidade como um alicerce inegociável da identidade local. Mãe Aninha não foi apenas uma líder religiosa; foi uma arquiteta da identidade afro-baiana.

A ressonância dessa fundação espiritual e cultural ecoa nas mais diversas manifestações artísticas. Em “Reconvexo”, Caetano Veloso capta essa essência de forma magistral. Ao evocar a “voz da matriarca da Roma Negra”, a canção, imortalizada na interpretação de Maria Bethânia, não faz apenas uma referência; ela se curva diante da força ancestral que emana dessa figura e do conceito que ela representa. “Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra” – este verso é um reconhecimento profundo da influência fundadora, uma declaração de pertencimento e um ato de resistência artística contra o apagamento dessa herança. Caetano, ele próprio um filho ilustre da Bahia, transforma sua arte em um veículo para reafirmar o orgulho e a vitalidade dessa identidade.

A “Roma Negra” pulsa nas tradições afro-brasileiras que tecem a rica tapeçaria cultural da Bahia. O Candomblé, com sua estrutura de terreiros autônomos, floresceu na cidade, fruto de um complexo, mas resiliente, sincretismo. Os centenas de terreiros espalhados pela capital baiana não são apenas locais de culto; são centros de preservação da ancestralidade, de transmissão de saberes, de partilha comunitária e de resistência cultural. As festas, os ritos, a música dos atabaques, as danças, a gastronomia farta de dendê e a arte vibrante – tudo em Salvador carrega as marcas indeléveis dessa herança. A “Roma Negra” manifesta-se em cada esquina, em cada ritmo, em cada sabor, provando que essa cultura está longe de ser um relicário do passado; é uma força dinâmica e presente.

Seguir os passos da “Roma Negra” é, portanto, uma jornada de profundo significado. É um convite urgente a questionar as narrativas hegemônicas que por tanto tempo tentaram silenciar e marginalizar as vozes afro-brasileiras. É um chamado à valorização irrestrita das tradições que moldaram nossa identidade, muitas vezes à custa de imensa luta e sacrifício. É imperativo reconhecer a contribuição afro-baiana não como um apêndice, mas como um componente fundante e essencial da cultura brasileira.

Que este artigo sirva não apenas como reflexão, mas como um genuíno chamado à ação. Que inspire a busca por um entendimento mais profundo, que motive o apoio direto aos terreiros – verdadeiros guardiões dessa herança – e que impulsione a defesa incansável de políticas públicas de memória, educação e igualdade racial que honrem e fortaleçam a verdadeira “Roma Negra”. Salvador, em sua essência, é e continua sendo um farol de resistência, espiritualidade e criatividade no Brasil contemporâneo, e a preservação e celebração desse legado é uma responsabilidade de todos nós.