{"id":16635,"date":"2025-03-23T10:35:19","date_gmt":"2025-03-23T13:35:19","guid":{"rendered":"https:\/\/politicaeresenha.com.br\/?p=16635"},"modified":"2025-03-23T10:57:31","modified_gmt":"2025-03-23T13:57:31","slug":"o-amor-e-a-fe-contra-a-tortura-a-luta-de-solange-e-dom-timoteo","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/politicaeresenha.com.br\/o-amor-e-a-fe-contra-a-tortura-a-luta-de-solange-e-dom-timoteo\/","title":{"rendered":"O Amor e a F\u00e9 Contra a Tortura: A Luta de Solange e Dom Tim\u00f3teo"},"content":{"rendered":"
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Amanh\u00e3, quando o calend\u00e1rio marcar o quarto ano desde que Haroldo Lima se despediu de n\u00f3s, o sil\u00eancio da sua aus\u00eancia ecoar\u00e1 mais alto do que nunca. N\u00e3o \u00e9 apenas uma data, mas um portal que, a cada giro do tempo, me puxa para um mar de lembran\u00e7as tingidas de saudade. Como em todos os anos, ergo minha voz em homenagem, mas desta vez, algo em mim se rebelou contra o comum, contra o morno relato de datas e feitos. Meu peito exigiu mais: palavras que pulsassem com a ess\u00eancia da vida, que desvendassem a verdade crua e bela do ser humano que Haroldo, em sua for\u00e7a quieta, encarnava. E ent\u00e3o, no meio dessa busca inquieta, um nome se acendeu como chama em meio \u00e0 penumbra: Tamar. Quem melhor do que ela, com seus olhos que guardam hist\u00f3rias e seu cora\u00e7\u00e3o que sentiu os mesmos ventos que moldaram Haroldo, para me guiar? Assim, neste ano, minha homenagem n\u00e3o ser\u00e1 apenas minha \u2014 ela carrega a alma de Tamar, um fio delicado que costura mem\u00f3rias e sil\u00eancios, trazendo Haroldo de volta, n\u00e3o como sombra, mas como luz que ainda aquece e ilumina.<\/p>\n
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Tamar Castro trabalhou muitos anos ao lado de Haroldo. Quase uma adolescente quando come\u00e7ou em seu gabinete, tornou-se a chefe mais jovem de gabinete de um parlamentar. Al\u00e9m disso, era comadre de Haroldo, que batizara um de seus filhos. Quando conversei com Castro sobre o projeto, ela me disse que n\u00e3o tinha muito a dizer, mas que fora profundamente tocada pelo filme “Ainda Estamos Aqui”. O filme despertou nela uma narrativa que havia sido contada pelo pr\u00f3pio \u00a0Haroldo e por Solange, uma hist\u00f3ria que retrata o homem, o pai, o ser humano que muitas vezes fica ofuscado pelo militante e pol\u00edtico.<\/p>\n
A narrativa de Tamar \u00e9 humanista, buscando capturar a ess\u00eancia de Haroldo al\u00e9m de suas conquistas p\u00fablicas. \u00c9 um relato que nos lembra que, por tr\u00e1s de cada grande figura, h\u00e1 uma pessoa com suas pr\u00f3prias hist\u00f3rias, amores e desafios. E \u00e9 essa humanidade que desejo homenagear hoje, quatro anos ap\u00f3s a partida de Haroldo Lima.<\/p>\n
Num pa\u00eds sufocado pelo sil\u00eancio imposto, onde cada palavra era medida pelo seu potencial de perigo, Haroldo Lima se movia como um fantasma entre dois mundos. O mundo vis\u00edvel, aquele que tocava as pontas dos dedos da normalidade, e o subterr\u00e2neo, onde a resist\u00eancia respirava em suspiros contidos.<\/em><\/p>\n A hist\u00f3ria que vou narrar parece brotar das p\u00e1ginas de um romance de resist\u00eancia, mas cada palavra \u00e9 um fragmento doloroso da nossa mem\u00f3ria coletiva. \u00c9 uma hist\u00f3ria de coincid\u00eancias que salvam vidas, de coragem que desafia o medo, de amor que sobrevive \u00e0 opress\u00e3o.<\/em><\/p>\n Na reuni\u00e3o clandestina, o ar estava carregado de tens\u00e3o. Os olhares trocados entre companheiros de luta eram c\u00f3digos que s\u00f3 eles entendiam. N\u00e3o sabiam que entre eles estava <\/em>Manoel Jover Telles,<\/em>, um nome que mais tarde se tornaria sin\u00f4nimo de trai\u00e7\u00e3o. Ele havia entregue todos \u00e0 repress\u00e3o, com uma senha macabra: a invas\u00e3o s\u00f3 aconteceria ap\u00f3s sua sa\u00edda.<\/em><\/p>\n Por uma coincid\u00eancia que parece obra do destino, naquele dia Haroldo saiu junto com<\/em> Jover Telles<\/em>. De olhos vendados, em grupos de tr\u00eas, conforme exigiam as medidas de seguran\u00e7a. No mesmo carro seguiram <\/em>Elza Monnerat,<\/em> Aldo Arantes e Haroldo Lima. Mal sabiam que aquela coincid\u00eancia seria o fio t\u00eanue que separaria Haroldo da morte.<\/em><\/p>\n Quando partiram, a repress\u00e3o entrou. Os que ficaram foram ceifados pela viol\u00eancia institucionalizada. <\/em><\/p>\n Por meses, agentes do DOI-CODI monitoraram a casa. Naquela madrugada, cerca de 40 militares cercaram o local com armas pesadas. O ataque come\u00e7ou \u00e0s 7 horas da manh\u00e3. Foram vinte minutos de tiroteio intenso. Pedro Pomar, de 63 anos, e \u00c2ngelo Arroyo, de 48 anos, foram mortos a tiros no local. Jo\u00e3o Batista Franco Drummond conseguiu fugir do cerco momentaneamente, mas foi capturado nas proximidades e levado ao DOI-CODI, onde morreu sob tortura durante a madrugada seguinte.<\/em><\/p>\n Haroldo, por\u00e9m, chegou em casa. Dormiu ao lado de Solange, sua companheira, sem saber que j\u00e1 era um homem marcado.<\/em><\/p>\n Para os algozes, matar Haroldo era uma “quest\u00e3o de honra”. O ult\u00edmo Presidente da A\u00e7\u00e3o Popular e um dos idealizadores pela entrada da AP no Partido Comunista do Brasil, al\u00e9m disso, ele era respons\u00e1vel pela gr\u00e1fica do partido, por isto, representava uma amea\u00e7a viva \u00e0 ordem que tentavam impor. Come\u00e7aram a forjar sua morte, trama sinistra que se desenrolava nos por\u00f5es do regime.<\/em><\/p>\n Na manh\u00e3 seguinte, Haroldo beijou Solange, despediu-se das filhas e saiu para providenciar uma nova carteira de motorista. Um documento de uma vida que j\u00e1 n\u00e3o poderia ser a sua. Ao virar a esquina, foi capturado. Solange e as meninas ficaram \u00e0 espera, num tempo que se esticava como borracha.<\/em><\/p>\n No fim da tarde, a casa foi invadida. Homens armados entraram, fecharam tudo e aguardaram. Diziam que esperavam por Haroldo. Aquela cena, retratada tantas vezes no cinema, foi vivida por Solange e suas tr\u00eas filhas pequenas.<\/em><\/p>\n Na varanda, Julieta, a mais velha, ficou postada com um lencinho branco entre os dedos mi\u00fados. Olhava para a rua, procurando o pai, querendo avis\u00e1-lo do perigo. A chuva ca\u00eda lenta, marcando o tempo de espera como um rel\u00f3gio de \u00e1gua.<\/em><\/p>\n Mas Solange conhecia seu marido. Havia combina\u00e7\u00f5es, c\u00f3digos estabelecidos. Se ele n\u00e3o voltasse at\u00e9 determinada hora, algo tinha acontecido. E o tempo passava, implac\u00e1vel, sem not\u00edcias. Foi ent\u00e3o que Solange afirmou, com a firmeza que s\u00f3 a certeza d\u00e1: “Meu marido foi preso”.<\/em><\/p>\n Levada ao DOPS, Solange foi interrogada e intimidada por horas. As meninas ficaram em casa, sob a “guarda” dos invasores. Quando finalmente a liberaram, o destino novamente mostrou sua m\u00e3o. Ao sair, Solange viu sobre uma mesa um documento que s\u00f3 ela reconheceria: uma velha carteira de estudante com a foto de um Haroldo jovem, quase menino.<\/em><\/p>\n “Olhe, ele estava aqui! Ele foi preso, esta carteira \u00e9 dele, do meu marido!”, exclamou ela, com o cora\u00e7\u00e3o a bater descompassado no peito.<\/em><\/p>\n Foi nesse momento que Solange entrou verdadeiramente na luta. N\u00e3o mais como esposa de um militante, mas como uma guerreira por direito pr\u00f3prio. Cat\u00f3lica fervorosa, ela buscou ajuda de Dom Paulo Evaristo Arns e do Abade do Mosteiro de S\u00e3o Bento, Dom Tim\u00f3teo Amoroso.<\/em><\/p>\n Luiz Eduardo Greenhalgh, jovem advogado de coragem inquebrant\u00e1vel, acompanhou-a de volta ao DOPS. Quando ela novamente denunciou ter visto a carteira, foi recapturada para interrogat\u00f3rio. Mas Solange, com a for\u00e7a que s\u00f3 os que n\u00e3o t\u00eam mais nada a perder possuem, declarou: “Todo mundo sabe que estou aqui dentro!”<\/em><\/p>\n Dom Tim\u00f3teo escreveu uma carta para um grande jornal paulista. A den\u00fancia ecoou de S\u00e3o Paulo at\u00e9 Salvador. A campanha ganhou as ruas: “Haroldo est\u00e1 preso! Haroldo est\u00e1 preso!”<\/em><\/p>\n O pequeno monge, fr\u00e1gil na apar\u00eancia mas gigante na coragem, partiu para S\u00e3o Paulo. Quando finalmente admitiram que Haroldo estava sob cust\u00f3dia, Dom Tim\u00f3teo exigiu visit\u00e1-lo. Para isso, submeteu-se a humilha\u00e7\u00f5es: revistas \u00edntimas, desnudamento, procedimentos vergonhosos que visavam quebrar seu esp\u00edrito. Mas nada o deteve.<\/em><\/p>\n Encontrou Haroldo destro\u00e7ado. Documentos da repress\u00e3o, revelados anos depois, mostraram que ele havia sido preso em S\u00e3o Paulo e levado de avi\u00e3o para o DOPS do Rio de Janeiro. L\u00e1, passou 17 dias sendo torturado incessantemente, beirando a morte.<\/em><\/p>\n Mas o grito de Solange chegou aos por\u00f5es da ditadura. Ela gritava em S\u00e3o Paulo e todo o Brasil ouvia. Solange, militante da A\u00e7\u00e3o Cat\u00f3lica, uma mulher de f\u00e9, n\u00e3o era apenas a esposa de um militante pol\u00edtico. Era uma for\u00e7a da natureza defendendo n\u00e3o apenas seu marido, mas a pr\u00f3pria dignidade humana.<\/em><\/p>\n Num detalhe que revela o absurdo da clandestinidade, as filhas pequenas n\u00e3o entendiam por que todos procuravam por “Haroldo Lima”. Elas diziam, com a inoc\u00eancia infantil: “As pessoas s\u00f3 procuram esse tal de Haroldo Lima e ningu\u00e9m procura meu pai.” Para elas, o pai chamava-se Carlos, nome de batismo da clandestinidade.<\/em><\/p>\n Dom Tim\u00f3teo Amoroso, homem de uma coragem serena, enfrentou os por\u00f5es da ditadura para quebrar a incomunicabilidade de Haroldo Lima. Fr\u00e1gil na apar\u00eancia, mas poderoso na determina\u00e7\u00e3o, ele representou a for\u00e7a da f\u00e9 contra a brutalidade do regime.<\/em><\/p>\n Hoje, lembrar dessa hist\u00f3ria \u00e9 um ato de resist\u00eancia contra o esquecimento. \u00c9 um lembrete de que a liberdade conquistada foi regada com o sangue dos que ousaram sonhar com um pa\u00eds mais justo.<\/p>\n Esta hist\u00f3ria, t\u00e3o parecida com o filme “Ainda Estou Aqui”, n\u00e3o \u00e9 fic\u00e7\u00e3o. \u00c9 a nossa hist\u00f3ria, a hist\u00f3ria de um Brasil que resistiu, que sobreviveu para contar. \u00c9 a hist\u00f3ria de Haroldo que, gra\u00e7as ao amor de Solange e \u00e0 coragem de Dom Tim\u00f3teo, p\u00f4de dizer: “Ainda estou aqui”.<\/p>\n <\/p>\n Padre Carlos<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Amanh\u00e3, quando o calend\u00e1rio marcar o quarto ano desde que Haroldo Lima se despediu de n\u00f3s, o sil\u00eancio da sua aus\u00eancia ecoar\u00e1 mais alto do que nunca. 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