Há pessoas que marcam nossa vida de maneira tão profunda que nem a morte é capaz de apagar a lembrança. Hoje, recordo o aniversário do falecimento de uma amiga querida, Zélia Serra. Sua partida trouxe consigo uma saudade que não se mede em palavras, mas que também me faz lembrar da importância que ela teve, não apenas para mim, mas para toda uma geração. Sua memória merece ser resgatada, não como uma lembrança nostálgica, mas como um farol que ilumina caminhos para as novas gerações, tão carentes de referências morais e espirituais. Falar de Zélia é reviver a luta de uma mulher que enxergava o Humanismo como expressão do Sagrado.
Zélia nasceu na Fazenda Barriguda, no município de Vitória da Conquista, uma mulher alegre, descontraída, mas de personalidade forte. Desde cedo, ela destoava das outras meninas de sua época. O poeta diz: “Descansar, morrer de sono na sombra da barriguda”, mas nossa amiga jamais se encaixou nessa imagem. Zélia não buscava descanso, e muito menos se amparava em homem algum. Sua busca era por algo maior – queria companheirismo, igualdade, e acima de tudo, queria ganhar asas.
Enquanto muitas mulheres de sua geração se viam limitadas ao arquétipo da normalista que estuda para educar seus filhos, Zélia desafiou as expectativas e se tornou a primeira mulher de Vitória da Conquista a se formar em medicina. Não era apenas uma conquista individual; era um grito de liberdade, uma ruptura com os padrões sociais da época. Sua voz, que antes ecoava nas colinas da sua terra natal, agora ressoava na capital, onde ela travou grandes batalhas por transformações sociais profundas. Sua luta transcendeu fronteiras geográficas e morais, tocando questões fundamentais da dignidade humana.
Zélia se engajou em muitas frentes, mas uma de suas lutas mais notáveis foi contra o tratamento desumano dado a pessoas com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos. Durante a ditadura militar, quando a repressão era a norma, ela ousou desafiar o sistema. Em uma época em que mais de 60 mil pessoas – homens, mulheres e crianças – perderam suas vidas em hospitais psiquiátricos superlotados, submetidos a tratamentos violentos, Zélia se levantou contra essa barbárie. Cadáveres vendidos para laboratórios de anatomia de universidades eram uma realidade sombria que Zélia enfrentou com coragem. Ela foi uma das pioneiras da Reforma Antimanicomial no Brasil, um movimento que visava resgatar a dignidade daqueles que, durante muito tempo, foram esquecidos e negligenciados.
A utopia de Zélia era o combustível que a impulsionava na vida. Não havia fronteiras para seus sonhos, e suas ações foram além de protestos e palavras – ela transformou o mundo ao seu redor. Do amanhecer ao anoitecer, ela dedicou sua vida àqueles que mais precisavam, mostrando que a verdadeira missão de um cristão está na luta pela dignidade e justiça social.
Hoje, faz seis anos que ela se despediu de nós. A ausência de Zélia trouxe uma sombra cinzenta sobre aqueles que a conheceram e amaram. Parece que o mundo perdeu um pouco da esperança que ela carregava no coração. Ela sempre tinha uma palavra de conforto, um conselho sábio, uma esperança renovadora para aqueles que, como ela, lutavam por um mundo melhor. E agora, mais do que nunca, sua falta é sentida, especialmente em tempos sombrios, quando o fascismo se reinstalou no poder.
Zélia sempre foi uma referência para mim. Companheira fiel na caminhada da Teologia da Libertação, sua fé era intrinsecamente ligada à ação, à luta por justiça. Ela não se contentava com uma fé estagnada, mas entendia que ser verdadeiramente cristã significava lutar pelos pobres, pelos marginalizados, pelos oprimidos.
Ela não está mais fisicamente presente entre nós, mas sua voz, suas ideias e sua luta continuam a ecoar. Zélia Serra? Presente! Hoje e sempre.
Padre Carlos