Política e Resenha

UMA CRIATURA CRIADORA

 

Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões”.

  Caetano Veloso


Estava quase tudo pronto, o carro de som tinha subido e descido a rua principal anunciando o grande comício que iria ser realizado no início da noite. A hora não era anunciada e se informava que “logo mais” importantes políticos teriam lugar de fala, mas isso dependia da possível aglomeração.  

 

A coisa era mais ou menos organizada assim :  as boas vindas, uma breve contextualização histórica feita pelo locutor, apresentação dos líderes, representantes partidário, autoridades políticas, e ali já estava certo quem iria “espalhar a brasa”, o primeiro, e quem iria fechar o evento. Não raras vezes o locutor convocava a si próprio com o famoso “esse que vos fala”.

 

Embaixo, seja de um palanque improvisado em cima de um caminhão alugado ou de alguma plataforma mais elevada, se encontrava a militância responsável pela segurança, iluminação, som e demais serviços de rara  necessidade.  Entre cochichos, breves avaliações de conteúdo, olhos atentos, aflições para medir a quantidade de gente que iria estar na praça, se encontrava ali nosso relevante, estimado e valoroso Toinho Boca de Bomba.

 

O apelido dessa ilustre figura veio do fato que, em uma noite de São João, ele resolveu soltar uma bomba segurando-a na boca. Era mais que certo que daria errado, pólvora no rosto inteiro, manchas de queimaduras que se eternizaram próximo aos lábios e na sequência o carimbo da alcunha.

 

Já os mais próximos e amáveis o tratava como Boquinha, e assim vamos discorrer com esse tratamento. Ele era um ser de fina gentileza, falante, criativo e vezes insuportável. Gostava de comunicar sobre os avanços do socialismo real do leste europeu, a importância da formação comunista no mundo e nos finais de semana ia pra igreja católica purificar dos seus presumíveis pecados.

 

Boquinha declamava Mayakovski como ninguém, e isso lhe dava a chancela e certeira justificativa da bebida, “vodka para não morrer de tédio” como ensinara o poeta. Em uma dessas notáveis embriagues fez um dos seus mais belos poemas :

 

Eu penso

tu pensas

ele pensa

nos pensamos

vos pensais

ele pensa

ahhhhhh, cada um pensa do jeito que quiser.

 

 

Impar nas respostas e de uma fina espiritualidade. Certo dia vestiu uma roupa super colorida, na cabeça uma cobertura parecendo aqueles de carregador de mala de hotel cinco estrelas, que se vê em filmes gringos; nos pés um mocassim fabricado pelo famoso Mocofaia e inesperadamente foi abordado por um incauto que lançou : “Boquinha, você está vestido como um viado”. Sem perder a calma respondeu “e você, como um homem”.

 

Em uma festa promovida por algumas mulheres de esquerda, as lâmpadas centrais se apagaram e uma vela era acendida alternadamente em cada mesa, seguida de uma declamação de poemas escrito por feministas. Ao final todas velas acenderam e as mulheres em coro gritaram : “Acorda homem  !!!” e Boquinha completou : “O café está pronto !”. Risos e palmas escaparam por todos os lados.

 

De fértil imaginação foi criador de um idioma original o “Tupã Guaraná”. Escrevia, entretanto a tradução dependia do seu estado de espírito, embriaguês e vários outros fatores ambientais. Algumas frases e traduções possíveis :

 

“Rés uné ita, sale do unhá.” : A vaca foi pro brejo.

“Taramenza rés mobilí sakar” : Não pense como um gado.

“Uti iaiá nakasa suriaté rés” :  Tem que dar nome aos bois.

 

Um idioma de alta complexidade, onde uma única palavra poderia ter milhões de significados. Tudo dependia da entonação e contexto. Como escreveu Nietzsche sobre “Assim falava Zaratrusta” : “um livro para todos e ninguém”, assim era o seu idioma.

 

Insatisfeito com o baixo aprendizado do seu vernáculo e imaginando ter uma conexão com a língua indígena, resolveu morar com os índios de Coroa Vermelha em Porto Seguro. Lá, fez uma tenda na terra dos Pataxós os informando que era descendente direto dos valentes Mongóios. Desajeitado, sem prática cultural,  cozinhava em uma panela de alumínio o que os pescadores lhe ofertava. Como os índios usavam panelas de barro, Boquinha foi expulso por contrariar as tradições e pela tentativa de contaminar o pataxó-hãhãhãe que é uma língua pertencente ao tronco linguístico macro-jê.

 

Anos se passaram, internet, conectividade, grupos de mensagens. Tudo estaria pronto para aplicar sua criação fabulosa, portanto escrevera várias frases contendo elementos do seu vocabulário, os quais sempre careciam de interpretação.  Tanto eram suas postagens que enchiam as memórias dos celulares dos participantes dos grupos, requerendo manutenção e exclusão em massa dos seus textos e imagens.  Boquinha terminou sendo conhecido como o cracker dos grupos, sendo por fim expulso do convívio virtual.

 

Hoje não se sabe por onde anda, a última vez foi visto na Faixa de Gaza segurando um cartaz escrito em “Tupã Guaraná” , “rés salatiment” que quer dizer em tradução livre : Força Palestina.

 

José Saramago, no “Ensaio sobre a cegueira” escreveu “O difícil não é viver com as pessoas, o difícil é compreendê-las”.

 

Talba las talbas, é pau dendê”.

 

 

 

 

Luiz Queiroz

Verão de 2024