Já faz algum tempo que desejo abordar este assunto, mas a morte de mais um padre acusado de abuso sexual acendeu uma luz que não posso mais ignorar. O caso mais recente, o do padre Francivaldo Lima da Silva, encontrado morto em Macapá, após ser acusado de crimes sexuais, desperta em nós não apenas indignação, mas uma necessidade urgente de reflexão. São vários padres que, ao longo dos anos, morrem em situações não esclarecidas, ou em trágicos suicídios, deixando para trás um presbitério que os acolheu, uma vocação que abraçaram e uma Igreja que sempre professaram amar. “Eu amo minha Igreja”, é o que muitos desses irmãos diriam. Mas, o que lhes faltou? O que não foi feito por eles? Cumplicidade ou omissão? Até onde vai a responsabilidade pessoal e a institucional da Igreja?
Estamos diante de uma questão complexa. Em meio a acusações de crimes sexuais, o escândalo, a dor e o turbilhão de emoções que seguem tais denúncias são inegáveis. A gravidade dessas alegações, que envolvem a violação de menores ou o abuso de pessoas vulneráveis, coloca toda a estrutura da Igreja em uma situação delicada, onde justiça e compaixão devem coexistir. Contudo, o que testemunhamos com cada nova denúncia e, consequentemente, com o fim trágico de alguns sacerdotes, é um sistema de justiça eclesiástica falho e uma hierarquia que parece perdida em sua própria tentativa de lidar com a crise.
Há muito conhecemos o método de lançar suspeitas sem dar aos acusados a oportunidade de defesa. Padres e freiras são, de uma hora para outra, transformados de santos em pecadores, acusados, julgados e condenados sem sequer serem ouvidos. Em muitos casos, não lhes é dito quem os acusa, ou sequer têm acesso aos detalhes das denúncias. A pergunta que surge é: até onde vai a omissão da Igreja e de seus pares? Este comportamento não é cristão, nem humano. Não somos chamados a julgar publicamente sem oferecer uma chance justa de defesa. E, no entanto, o que vemos é um julgamento na praça pública, onde a honra e o nome de pessoas são destruídos sem que tenham como se defender.
Vivemos, ao que parece, uma inversão de valores, onde a justiça popular, alimentada por suposições e rumores, tomou o lugar da justiça devida. Numa era onde informações parciais são suficientes para condenações públicas, o medo e o silêncio tomam conta dos presbitérios. Aqueles que deveriam ser a voz da razão, lutando por justiça, acabam se tornando cúmplices de um sistema que prioriza o afastamento rápido, a fim de proteger a instituição, em vez de cuidar dos inocentes e garantir uma investigação justa.
Não se trata de defender os culpados. Aqueles que cometem crimes devem ser responsabilizados. Mas a Igreja, enquanto instituição, deve lembrar-se dos princípios da presunção de inocência e da defesa justa. Até os mais leigos do Direito sabem que é preciso provas sólidas para condenar, e, antes de afastar um sacerdote de suas funções, indícios claros devem ser apresentados. A hierarquia eclesiástica parece, contudo, ter encontrado uma nova forma de justiça, onde se condena sem tribunal, se constrói teses sem provas e se afasta sacerdotes sem um julgamento adequado.
O medo que se espalha pelas dioceses é um dos aspectos mais preocupantes dessa nova realidade. Vemos irmãos de presbitério aceitando com normalidade esses ataques, como se o medo de serem os próximos a serem acusados os impedisse de lutar por justiça. A presunção da culpa tomou o lugar da presunção da inocência. Padres são afastados e enviados de volta para suas casas, sem o mínimo de dignidade, sem qualquer direito ao contraditório ou à defesa.
Não estamos lidando apenas com um problema de abusos sexuais; estamos diante de uma crise de direitos fundamentais dentro da própria Igreja. Se, por um lado, a Igreja sempre esteve obcecada com a moral sexual, por outro, agora enfrenta uma crise interna em que escândalos sexuais são expostos, e, ao invés de resolver o problema com justiça e transparência, opta por medidas que parecem mais uma nova inquisição. Não podemos ignorar que há aqueles que abusam do poder e da confiança que lhes foi depositada. No entanto, não podemos nos calar diante das injustiças que surgem quando a condenação é feita apenas com base em pedaços de verdade.
Cada padre que morre em circunstâncias suspeitas ou em suicídio representa uma falha não apenas individual, mas institucional. Uma falha de seus pares, de sua diocese, de uma estrutura que, em vez de apoiá-los em momentos de crise, os abandona ao seu destino. Ao ignorar os direitos básicos de defesa e dignidade, a Igreja corre o risco de perder não apenas suas vocações, mas também sua própria essência. Onde está o amor, a compaixão, a justiça cristã?
Não defendo os culpados, mas também não posso me calar diante da barbárie que vejo quando direitos humanos fundamentais são pisoteados, quando padres são acusados sem direito de defesa e condenados na praça pública. O que está em jogo não é apenas a moralidade da Igreja, mas a própria justiça que ela deveria defender.
Que estejamos vigilantes para não sermos cúmplices de mais mortes. A justiça verdadeira requer equilíbrio, transparência e compaixão, e isso começa com a garantia de que todos, mesmo os acusados, sejam tratados com dignidade.