Apoiado em uma minúscula mesa de cor amarronzada, onde a madeira já tinha incorporado desde o suor das mãos às tintas das canetas e carimbos do sindicato, vejo que entrou um dos diretores com uma garrafa com líquido amarelado em uma das mãos e assentou no canto da sala, onde seu olhar poderia alcançá-la. Anselmo era um sujeito de baixa
estatura, magro, de traços fortes, que sem muita dificuldade dava para perceber em seu rosto o sofrimento do homem ribeirinho, mas dentro desse corpo existia uma figura cintilante, destemida e profundamente afetuosa. Saudou a todos que estavam na reunião e pela identidade que tínhamos me olhou balançando a cabeça, contendo no gesto mais que um sorriso.
Sindicato combativo na margem do sub-médio São Francisco a pauta sempre era a luta pela terra, a violência no campo, as dificuldades para enfrentar o latifúndio, a grilagem, o poder judiciário, o estado e a pistolagem. Estávamos no meio da década perdida, ditadura militar distensionando para abertura, economia estagnada, mas era também o instante histórico do novo ordenamento no quadro político da sociedade. E lá, perto da agência dos correios, em uma praça que era abraçada pela sombra de algumas árvores, estávamos discutindo como iríamos conseguir meios para financiar a ida de algumas lideranças para Salvador, onde deveríamos fazer denúncias nos jornais e percorrer os órgão do estado para reivindicar ações, recursos e assistência que poderiam fortalecer o movimento rural.
Tempo dos dancing days nos inferninhos, das meias coloridas que tinham fios brilhantes, das horrorosas pochetes que cabiam de tudo, das calças pantalonas apertada na cintura, nas bocas e folgada nas pernas, do corte de cabelo “pigmaleão”, sapatos mocassins, das camisetas com frases em inglês que a maioria não sabia interpretar, nós éramos os cafonas para um momento da história que ainda exalava o odor podre dos cárceres e da tortura. E naquele local, onde os cheiros dos homens se misturavam ao desejo de liberdade, se ouvia ao longe, após o silêncio de cada fala, o movimento das águas do São Francisco retraindo das suas vazantes.
Lá estavam, naquele dia, os sindicalistas rurais, muitos deles ainda sem um café da manhã, sentados naqueles bancos que desequilibram quando os que sentam nas extremidades se levantam, e nós. A militância sonhadora, que idealizava uma sociedade socialista, que não importava com o tamanho dos inimigos, em busca de uma referência irreversível e por trás do discurso simples que pudesse ser entendido, escondia as leituras dos livros, dos documentos clandestinos e das discussões dos grupos de estudos.
Quando falta alternativa econômica para manter a luta o desânimo estraçalha a prática. E lá estávamos tentando encontrar a forma de financiamento para viagem, quando Anselmo pediu a palavra e apontou para frasco de líquido amarelo que tinha trazido e disse firmemente : “a solução está naquela garrafa”. Todos seguiram os olhos para onde ele apontara, no canto da sala, na sombra, com sua cor de já tarde das laranjas, embaixo da minúscula janela que arejava o salão, debaixo de todas expectativas e esperanças. Era mel de abelha e a conexão que faltava se fechou ali, imanente como natureza naturante de Spinoza, com seu finito imediato.
Acertamos que iria para capital, e nessa primeira viagem levaria algumas amostras. Para isso teria que vender meu precioso walkman, junto as fitas com as músicas de Zé Ramalho e Bob Dylan, aquelas que um dia sonhei ouvir atravessando o Volga para atingir a “morada da sétima felicidade”. Mas dali, naquele dia de sol escaldante, onde as roupas exalava a fumaça nauseante dos fogões de lenha, sai acreditando que seria a missão mais importante da minha vida. As das árvores estacionadas na praça devolveram para mim a grandeza revolucionária de suas sombras, o sol parecia obedecer a um ritmo inacreditável de iluminação e quando desci do batente alto que separava o passeio do sindicato com a terra da cidade, o sal das minhas botas tinham a mágica da determinação.
Tudo acertado, passagem comprada. Em Salvador busquei encontrar alguns amigos que tinham se desencantado com a militância política e estavam em outra perspectiva, na busca da sua identidade individual. Eles viraram naturalistas, refletiam sobre a importância do encontro interior, liam Gramsci para encontrar a quebra das hegemonias, estudavam J. Posadas, um trotskista que acreditava no comunismo intergalático, queriam formar comunidades alternativas, hortas, melhorar a si mesmos, fumar, esperar contatos imediatos com discos voadores, interpretar símbolos de Erich Von Daninken, morar na Chapada, viver em paz e o mais importante para nós: o mel representava também um canal dessa simbologia.
Foi uma época que surgiram os restaurantes naturais, as lojas de produtos orgânicos e uma enorme preocupação individualizada de salvar o planeta através do consumo de alface cultivada através da compostagem feita no fundo do quintal. Mas, os nossos objetivos eram outros : buscar o financiamento da luta camponesa tendo o mel como a conexão com o mundo real. Mas, para vendê-lo precisava de conhecimentos sobre o produto e afirmar suas propriedades antioxidadente, calmante, laxativas e revigorantes. Nada mais motivador que um mel silvestre. Vendi todos os que tinha levado e acertei algumas encomendas. O êxito foi comemorado no Bar Raso da Catarina, lá no Passeio Público, com duas doses de pinga e a lembrança do quarto capítulo do “Capital” de Marx.
Voltei para região com a grandeza de um Ernesto Martins (Erich Sacs), o velho, aquele que tinha ensinado pelos escritos da POLOP a importância da aliança camponesa com os trabalhadores da cidade. O empreendimento tomou corpo e vários companheiros começaram “furar” mel e trazer para o sindicato. A matemática era justa : parte para quem coletava e outra para o movimento.
Mais duas viagens e a clientela inicial foi saciada. Eis que encontramos uma companheira, no
Tororó, uma militante que tinha vindo da favela do Vidigal, Maria Helena, que sempre cantarolava
Mister Tamborine, nos deu uma informação importante : vender na sede da CAR e Centro Administrativo. Rumamos para lá com algumas garrafas e um outro discurso, o mel tinha sua finalidade definida, era como pincel no muro e uma expressiva frase de protesto. Vendemos todas, sucesso completo.
Alguns problemas operacionais começaram a surgir na base: a ausência de novas colmeias para extração, atração acentuada de moscas na sala do Sindicato e exigência de pagamento adiantado por alguns fornecedores. Ainda assim, tudo podia ser contornado e o negócio se apresentava como uma relevante alternativa.
Anselmo, Zé Pinto, Bia, Pedrão, sindicalistas abnegados, quem tinha nos olhos as lágrimas do amanhã, que só a lembrança e maturidade são capazes de enxergar o tamanho das suas generosidades, fizeram conosco várias viagens. Na CAR tivemos alguns compradores especiais: Acácio, militante sindicalista, socialista, aquele de tinha uma corneta de 120 decibéis na voz e a cada garrafa vendida uma hora de discurso para aderirmos à CUT Rural; Zezéu Ribeiro, o feio e mais belo dos homens, uma compra e um abraço transmitindo sua fraterna solidariedade. No Centro Administrativo tinha um senhor, que o nome se perdeu no tempo, indicado pelo pouco sútil Paulo Jackson, o valente deputado que morreu em um acidente de ônibus, que nos levava às salas da Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Ele falava uma linguagem limpa, clara, que ajuntava nossa invisibilidade ao imaginário do mundo melhor. Era mistura dos cabelos brancos de Célio Maranhão com a barba preta de Joaquim da CPT. E lá, perto do BANEB, na “boca do caixa”, estava a Variant verde de Edival Passos vendendo requeijão, queijo e outro produtos da terra, sempre com um sorriso, uma energia, uma motivação incontrolável e uma generosidade indescritível. Ele, para nós, era o exemplo de negócio viável, diversificado e pulsando um sangue que inundava as sensações, quase um Lucaks falando sobre trabalho, ideologia e subjetividade.
As viagens eram feitas ora em um Toyota Bandeirante para levar uma comissão de trabalhadores, ora nos ônibus da Viação Novo Horizonte, aquela que não tem hora de partida nem de chegada, sempre é a partir de um horário presumido. No segundo, o número de viajantes era menor, para conter os custos e aumentar os resultados das vendas. Mas, naquela viagem que foi a última, chovia forte fora e dentro do ônibus, as estradas estavam banhadas e o reflexo do farol lançava sobre o caminho as cores do infinito, o som do limpador do pára-brisa quase nos hipnotizavam e entre os cochilos e as paradas para tomar o café requentado das rodoviárias, depois de intermináveis horas, chegamos em Salvador.
Uma muda de roupa na mochila, a meia polida pelo atrito da botina tinha uma transparência que indefinia sua cor, a camisa amassada parecia que tinha passado pela boca de um ruminante, o corpo dolorido pela ausência do explicável, o fedor do cigarro de palha que penetrava na pele escorregava por entre os tecidos repugnantes das poltronas, mas tínhamos chegado. Éramos dois, Bia era um caatingueiro alto, falante, desenrolado, magro, forte, tinha uma pele daquelas que nunca envelhece, que o sol desistiu de queimar, e uns braços grandes que acompanhavam em gestos as suas palavras.
Levávamos 24 garrafas de mel, em quatros caixas de papelão, uma embalagem com divisórias que eram usadas para acondicionar as bebidas Jurubeba Leão do Norte. No meio, uma garrafa de pinga que seria destinada para o sorridente e fraterno advogado dos sindicatos, Paulo Torres da AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais). A chuva molhou as caixas, elas secaram por cima, mas o fundo ainda estava úmido e desagregado. Pegamos a primeira caixa, encostamos perto do gradil de desembarque, na segunda, a pouco metros da mala do ônibus, no meio do caminho o fundo da caixa estourou, primeiro caiu a cachaça que entornou o chão com vidros e cheiro de cana, em seguida as garrafas de mel. Ali, naquele momento, olhei para Bia buscando apoio e ele segurava o chapéu de couro como se o quisesse tirá-lo e colocar na cabeça de novo, e desorientado não sabia se me ajudava ou desembarcava o restante da carga. Seus gestos não tinham simetria alguma e seu corpo executava círculos próprios dos indefinidos.
Início da manhã, os coletivos das trocas de turno dos trabalhadores do pólo petroquímico de Camaçari estavam chegando, gente, muita gente, uma multidão sem rostos que queria voltar para suas casas. E lá, naquele chão bordado de mel eles pisavam, produzindo um ruído característico e distribuíam as placas grudentas pelo chão cinza da rodoviária. Em minutos a vigilância da SInarte, responsável pelo gerenciamento do terminal, nos abordaram. Eles de perfil eram mais largos que nós dois de frente, cara de poucos amigos, braços que pareciam explodir das roupas, como os “malhados de Marambaia” que um dia enfrentamos no Farol da Barra. Mas, ai é uma outra história. E nos disseram imperativamente : “Vocês vão limpar tudo”.
Não dá pensar nessa hora, mas na gente surge a impotência, uma ausência de sentidos quando os sentidos se arrebentam no desconhecido. Como um filme lembrei daquela reunião, de Anselmo, dos companheiros, da descida do batente alto, da praça e suas árvores, do cheiro podre das vazantes, do som do rio, da mesa carimbada pelo azul das canetas e da coragem daqueles que lutavam por uma vida melhor. Não dava pra chorar mas o desejo salgava a garganta, os nervos, o corpo cansado já não sabia mais o que fazer, e quando olho para o outro lado uma outra caixa estoura nas mãos de Bia, e os rinocerontes da Sinarte nos fitaram como se quisessem nos dividir em pedaços. Junto com a limpeza do chão, onde foi possível, recolhemos os cacos de vidro e o que nos restavam de dignidade, mel e esperança. Foi nossa ultima viagem e o início de outros empreendimentos alternativos.
E lá, naquele terminal de desembarque, lá naquele chão está grudado tantas histórias, chegadas e partidas de um tempo que nunca vai se acabar, porque o doce dos nossos sonhos foram também construídos com passageiras derrotas, acasos e mel silvestre.
Todas essas regiões de conflito, anos depois, foram consolidadas como áreas de reforma
Agrária.
Luiz Queiroz